Página dedicada a mi madre, julio de 2020

Fernando Pessoa

Drama e poesia

1909-1935

Textos

O marinheriro (drama estático em um quadro)
Fragmentos dramáticos (Sakyamuni, Diálogo na sombra, Diálogo no jardim de palácio, A morte do príncipe, Salomé)
Poesia ortónima
Poesia de Álvaro Campos

 

                                                  O MARINHEIRO
                                     (DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO)

     Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.

     Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRA VELADORA. Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA. Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA. Não: o horizonte é negro.

PRIMEIRA. Não desejais, minhas irmãs, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso…

SEGUNDA. Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?

PRIMEIRA. Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado… As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?…

                                    (Uma pausa)

A MESMA. Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena…

SEGUNDA. Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.

TERCEIRA. Não. Talvez o tivéssemos tido…

PRIMEIRA. Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeássemos?…

TERCEIRA. Onde?

PRIMEIRA. Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

TERCEIRA. De quê?

PRIMEIRA. Não sei. Porque o havia eu de saber?

                                  (Uma pausa)

SEGUNDA. Todo este país é muito triste… Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe… Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse…

PRIMEIRA. Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!… O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA. Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca…

                                    (Uma pausa)

PRIMEIRA. Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?

SEGUNDA. Não, não dizíamos.

TERCEIRA. Por que não haverá relógio neste quarto?

SEGUNDA. Não sei… Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria… Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

PRIMEIRA. Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma… Estou procurando não olhar para a janela… Sei que de lá se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes, outrora… Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem… Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar… Foi longe daqui que isto pôde ser… Quando virá o dia?…

TERCEIRA. Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira… sempre, sempre, sempre…

                                     (Uma pausa)

SEGUNDA. Contemos contos umas às outras… Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal… Só viver é que faz mal… Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes… Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho… Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo… Mas o passado — por que não falamos nós dele?

PRIMEIRA. Decidimos não o fazer… Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos… Com a luz os sonhos adormecem… O passado não é senão um sonho… De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou… O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?… Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas… O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa… Sinto-o envolver-me como uma névoa… Ah, falai, falai!…

SEGUNDA. Para quê?… Fito-vos a ambas e não vos vejo logo… Parece-me que entre nós se aumentaram abismos… Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos… Este ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma… Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelo cabelos — é o gesto com que falam das sereias… (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.

PRIMEIRA. Eu também devia ter estado a pensar no meu…

TERCEIRA. Eu já não sabia em que pensava… No passado dos outros talvez…, no passado de gente maravilhosa que nunca existiu… Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho… Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?… Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?…

SEGUNDA. As mãos não são verdadeiras nem reais… São mistérios que habitam na nossa vida… às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus… Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se… Para onde se inclinam elas?… Que pena se alguém pudesse responder!… Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes… É sempre longe na minha alma… Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse…

TERCEIRA. As vossas frases lembram-me a minha alma…

SEGUNDA. É talvez por não serem verdadeiras… Mal sei que as digo… Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando… Mas eu devo ter vivido realmente à beira-mar… Sempre que uma cousa ondeia, eu amo-a… Há ondas na minha alma… Quando ando embalo-me… Agora eu gostaria de andar… Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer… Dos montes é que eu tenho medo… É impossível que eles sejam tão parados e grandes… Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm… Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz…

PRIMEIRA. Por mim, amo os montes… Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia… Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras… Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho… A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos… E os nossos sonhos eram de que as árvores projectassem no chão outra calma que não as suas sombras… Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém… Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar…

SEGUNDA. Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar… A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas… Eu era pequena e bárbara… Hoje tenho medo de ter sido… O presente parece-me que durmo… Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém… O mar era grande de mais para fazer pensar nelas… Na vida aquece ser pequeno… Éreis feliz, minha irmã?

PRIMEIRA. Começo neste momento a tê-lo sido outrora… De resto, tudo aquilo se passou na sombra… As árvores viveram -no mais do que eu… Nunca chegou nem eu mal esperava… E vós irmã, por que não falais? 

TERCEIRA. Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais… Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente… Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar… E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?…

PRIMEIRA. Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!… Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso… Falai, portanto, sem reparardes que existis… Não nos íeis dizer quem éreis?

TERCEIRA. O que eu era outrora já não se lembra de quem sou… Pobre da feliz que eu fui!… Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos… Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me… Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água… Tinham um sorriso só deles, independente do meu… Era sempre sem razão que eu sorria… Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar…

PRIMEIRA. Não falemos de nada, de nada… Está mais frio, mas por que é que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está… Para que é que havemos de falar?… É melhor cantar, não sei porquê… O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos… Eu podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que vo-la cante?

TERCEIRA. Não vale a pena, minha irmã… quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar…

                                  (Uma pausa)

 

PRIMEIRA. Breve será dia… Guardemos silêncio… A vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água… Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu… Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada… Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?…

SEGUNDA. À beira-mar somos tristes quando sonhamos… Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado… Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma… Tudo é muito e nós não sabemos nada… Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?

PRIMEIRA. Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis… Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai…, contai-o só depois de o alterardes…

SEGUNDA. Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim… Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou… Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho… Não sei onde ele teve princípio… E nunca tornei a ver outra vela… Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar…

PRIMEIRA. Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes…

SEGUNDA. Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer… Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto…

PRIMEIRA. Por que é que me respondestes?… Pode ser… Eu não vi navio nenhum pela janela… Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena… Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar…

SEGUNDA. Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas… Não vi se alguma vez pousavam… Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali… Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas… Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

 

PRIMEIRA. Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!…

TERCEIRA. Deixai-a falar… Não a interrompais… Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram… Adormeço para a poder escutar… Dizei, minha irmã, dizei… Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar…

SEGUNDA. Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal… Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível… Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta…

                                   (uma pausa)

 

PRIMEIRA. Minha irmã, por que é que vos calais?

SEGUNDA. Não se deve falar demasiado… A vida espreita-nos sempre… Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber… Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho… Vede: o horizonte empalideceu… O dia não pode já tardar… Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

PRIMEIRA. Contai sempre, minha irmã, contai sempre… Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam… O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas… Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva… Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma…

SEGUNDA. Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto… São três a escutar… (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo ). Três não… Não sei… Não sei quantas…

TERCEIRA. Não faleis assim… Contai depressa, contai outra vez… Não faleis em quantos podem ouvir… Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam… Voltai ao vosso sonho… O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?

SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta). Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos… Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas… Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas… Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo… Depois viajava, recordando, através do país que criara… E assim foi construindo o seu passado… Breve tinha uma outra vida anterior… Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara… Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril… Tudo era diferente de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido… Exigis que eu continue?… Causa-me tanta pena falar disto!… Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos…

TERCEIRA. Continuai, ainda que não saibais porquê… Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço…

PRIMEIRA. Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai… Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos… Velamos as horas que passam… O nosso mister é inútil como a Vida…

SEGUNDA. Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar… Quis então recordar a sua pátria verdadeira…, mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele… Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara… Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara… E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido… Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava… E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido… Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer… Ó minhas irmãs, minhas irmãs… Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse… Qualquer coisa que explicaria isto tudo… A minha alma esfria-me… Mal sei se tenho estado a falar… Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos…

PRIMEIRA (numa voz muito baixa). Não sei que vos diga… Não ouso olhar para as cousas… Esse sonho como continua?…

SEGUNDA. Não sei como era o resto… Mal sei como era o resto… Por que haverá mais?…

PRIMEIRA. E o que aconteceu depois?

SEGUNDA. Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?… Veio um dia um barco… Veio um dia um barco… — Sim sim… só podia ter sido assim… — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro.

TERCEIRA. Talvez tivesse regressado à pátria… Mas a qual?

PRIMEIRA. Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?

SEGUNDA. Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
                                    (uma pausa)

TERCEIRA. Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

SEGUNDA. Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

PRIMEIRA. Ao menos, como acabou o sonho?

SEGUNDA. Não acabou… Não sei… Nenhum sonho acaba… Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?… Não me faleis mais… Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é… Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço… Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?… Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho… Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite… Não estejais silenciosas… Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba… Vede, começa a ir ser dia… Vede: vai haver o dia real… Paremos… Não pensemos mais… Não tentemos seguir nesta aventura interior… Quem sabe o que está no fim dela?… Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite… Não falemos mais disto, nem a nós próprios… É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

TERCEIRA. Foi-me tão belo escutar-vos… Não digais que não… Bem sei que não valeu a pena… É por isso que o achei belo… Não foi por isso, mas deixai que eu o diga… De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente…

SEGUNDA. Tudo deixa descontente, minha irmã… Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo… De eterno e belo há apenas o sonho… Por que estamos nós falando ainda?…

PRIMEIRA. Não sei… (olhando para o caixão, em voz mais baixa) Por que é que se morre?

SEGUNDA. Talvez por não se sonhar bastante…

PRIMEIRA. É possível… Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?…

SEGUNDA. Não, minha irmã, nada vale a pena…

TERCEIRA. Minhas irmãs, é já dia… Vede, a linha dos montes maravilha-se… Por que não choramos nós?… Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também… Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos… Ela de que sonharia?…

PRIMEIRA. Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos…

                                     (uma pausa)

SEGUNDA. Talvez nada disto seja verdade… Todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho… Olhai bem para tudo isto… Parece-vos que pertence à vida?…

PRIMEIRA. Não sei. Não sei como se é da vida… Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente…

SEGUNDA. Não vale a pena estar triste de outra maneira… Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver… Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo… Vede, o céu é já verde… O horizonte sorri ouro… Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar…

PRIMEIRA. Chorastes, com efeito, minha irmã.

SEGUNDA. Talvez… Não importa… Que frio é isto?… Ah, é agora… é agora!… Dizei-me isto… Dizei-me uma coisa ainda… Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?…

PRIMEIRA. Não faleis mais, não faleis mais… Isso é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis… O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir… Tenho medo do que não chegastes a dizer… Vede, vede, é dia já… Vede o dia… Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora… Vede-o, vede-o… Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais… Vede-o a vir, o dia… Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram… Se nada existisse, minhas irmãs?… Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?… Porque olhastes assim?…

(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)

A MESMA. Que foi que dissestes e que me apavorou?… Senti-o tanto que mal vi o que era… Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto medo como dantes… Não, não… Não digais nada… Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não deixar pensar… Tenho medo de me poder lembrar do que foi… Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus… Devíamos já ter acabado de falar… Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido… O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente… Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia devia ter já raiado… Deviam já ter acordado… Tarda qualquer coisa… Tarda tudo… O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso horror?… Ah, não me abandoneis… Falai comigo, falai comigo… Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz… Tenho menos medo à minha voz do que à ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando…

TERCEIRA. Que voz é essa com que falais?… É de outra… Vem de uma espécie de longe…

PRIMEIRA. Não sei… Não me lembreis isso… Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo… Mas já não sei como é que se fala… Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo… Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes… Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles…

TERCEIRA (para a SEGUNDA). Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.

SEGUNDA. São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê… Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não reparamos que é dia?…

PRIMEIRA. Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo… Que estranha que me sinto!… Parece-me já não ter a minha voz… Parte de mim adormeceu e ficou a ver… O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo… Já não sei em que parte da alma é que se sente… Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo… Para que foi que nos contastes a vossa história?

SEGUNDA. Já não me lembro… Já mal me lembro que a contei… Parece ter sido já há tanto tempo!… Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!… O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos ideia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar…

PRIMEIRA. Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para falar… Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis… A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele… Não sei o que é isto, mas é o que sinto… Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer… Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende? 

SEGUNDA. Não sinto nada… Sinto as minhas sensações como uma coisa que se sente… Quem é que eu estou sendo?… Quem é que está falando com a minha voz?… Ah, escutai…

PRIMEIRA e TERCEIRA. Quem foi?

SEGUNDA. Nada. Não ouvi nada… Quis fingir que ouvia para que vós supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir… Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida… Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?

PRIMEIRA. Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim… Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as ideias de todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?…

TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada). Ah, é agora, é agora… Sim, acordou alguém… Há gente que acorda… Quando entrar alguém tudo isto acabará… Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo… É dia já. Vai acabar tudo… E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho…

SEGUNDA. Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredito…     

   Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

 

1913. Orpheu , 1. Lisboa, 1915

Drama y poesía

Versión 2014

Textos

El marinero (drama estático en un cuadro)
Fragmentos dramáticos (Sakyamuni, Diálogo en la sombra, Diálogo en el jardín de palacio, La muerte del príncipe, Salomé)
Poesía ortónima
Poesía de Álvaro Campos

 

                                                 EL MARINERO
                             (DRAMA ESTÁTICO EN UN CUADRO)

     Un cuarto que es sin duda de un castillo antiguo. Se ve que el cuarto es circular. En el centro se levanta, sobre un catafalco, un ataúd con una doncella, de blanco. Cuatro antorchas a los lados. A la derecha, casi frente a quien imagina el cuarto, hay una única ventana, alta y estrecha, que da para donde solo se ve, entre dos montes lejanos, un pequeño espacio de mar.

     Al lado de la ventana velan tres doncellas. La primera está sentada frente a la ventana, de espaldas a la antorcha de arriba a la derecha. Las otras dos están sentadas a cada lado de la ventana. Es de noche y hay como un resto vago de claro de luna.

PRIMERA VELADORA. Aún no ha dado hora alguna.

SEGUNDA. No se puede oír. No hay reloj aquí cerca. Dentro de poco será de día.

TERCERA. No, el horizonte está negro.

PRIMERA. ¿No queréis, hermanas mías, que nos distraigamos contándonos lo que fuimos? Es hermoso y es siempre falso…

SEGUNDA. No, no hablemos de ello. Además, ¿fuimos nosotras algo?

PRIMERA. Tal vez. No lo sé. Pero, a pesar de ello, siempre es hermoso hablar del pasado… Las horas han pasado y nosotras hemos guardado silencio. Yo he estado mirando la llama de esa vela. A veces tiembla, otras se vuelve más amarilla, otras palidece. No sé por qué ocurre eso. Pero nosotras, hermanas mías, ¿sabemos por qué ocurre alguna cosa?…

                                     (Pausa)

LA MISMA. Hablar del pasado – eso tiene que ser hermoso, porque es inútil y da tanta pena…

SEGUNDA. Hablemos, si queréis, de un pasado que no hayamos tenido.

TERCERA. No. Tal vez lo hayamos tenido…

PRIMERA. No decís más que palabras. ¡Y es tan triste hablar! ¡Es un modo tan falso de olvidarnos!… ¿Y si paseamos?…

TERCERA. ¿Dónde?

PRIMERA. Aquí, de un lado a otro. A veces eso despierta los sueños.

TERCERA. ¿De qué?

PRIMERA. No sé. ¿Por qué tendría que saberlo?

                                   (Pausa)

SEGUNDA. Todo este país es muy triste… En el que viví antes era menos triste. Al atardecer hilaba, sentada a la ventana. La ventana daba al mar, y a veces había una isla a lo lejos… Muchas veces no hilaba; miraba el mar y me olvidaba de vivir. No sé si era feliz. Ya nunca volveré a ser eso que tal vez nunca he sido…

PRIMERA. Fuera de aquí nunca he visto el mar. Allí, desde esa ventana, que es la única desde la que el mar se ve, ¡se ve tan poco!… ¿El mar de otras tierras es hermoso?

SEGUNDA. Solo el mar de las otras tierras es hermoso. El que vemos nos da siempre nostalgia del que no veremos nunca…

                                      (Pausa)

PRIMERA. ¿No dijimos que íbamos a contarnos nuestro pasado?

SEGUNDA. No, no lo dijimos.

TERCERA. ¿Por qué no habrá reloj en este cuarto?

SEGUNDA. No sé… Pero así, sin reloj, todo es más apartado y misterioso. La noche se pertenece más a sí misma… ¿Quién sabe si nosotras podríamos hablar así si supiéramos la hora que es?

PRIMERA. Hermana mía, en mí todo es triste. Llevo diciembres en el alma… Procuro no mirar a la ventana… Sé que desde allí se ven, a lo lejos, las montañas… Yo fui feliz al otro lado de las montañas, antes… Era pequeña. Cogía flores todo el día y antes de dormir pedía que no me las quitaran… No sé lo que esto tiene de irreparable y que me da ganas de llorar… Fue lejos de aquí donde esto pudo ser… ¿Cuándo vendrá el día?

TERCERA. ¿Qué importa? Viene siempre del mismo modo… siempre, siempre, siempre…

                                                       (Pausa) 

SEGUNDA. Contémonos cuentos las unas a las otras… Yo no sé ningún cuento, pero eso no hace daño… Solo vivir hace daño… No rocemos la vida ni con la orla de nuestros vestidos… No, no os levantéis. Eso sería un gesto, y cada gesto interrumpe un sueño… En este momento no tenía sueño alguno, pero me resulta suave pensar que podía estar teniéndolo… Pero el pasado – ¿por qué no hablamos de él?

PRIMERA. Decidimos no hacerlo… Pronto rayará el día y nos arrepentiremos… Con la luz se duermen los sueños… El pasado no es más que un sueño… Además, no sé qué no es un sueño. Si miro el presente con mucha atención, me parece que ya ha pasado… ¿Y qué es cualquier cosa? ¿Cómo ocurre? ¿Cómo es por dentro el modo como ocurre?… Ah, hablemos, hermanas mías, hablemos alto, hablemos todas juntas… El silencio comienza a tomar cuerpo, comienza a ser una cosa… Siento que me envuelve como una niebla… ¡Ah, hablad, hablad!

SEGUNDA. ¿Para qué?… Os miro a ambas e inmediatamente no os veo… Me parece que entre nosotras crecieron abismos… Tengo que debilitar la idea de que puedo veros para poder llegar a veros… Este aire caliente es frío por dentro, en esa parte que toca el alma… Yo debería ahora sentir que unas manos imposibles me acarician los cabellos – es el gesto con el que hablan de las sirenas… (Cruza las manos sobre las rodillas. Pausa) Incluso hace poco, cuando no pensaba en nada, estaba pensando en mi pasado.

PRIMERA. Yo también tenía que haber estado pensando en el mío…

TERCERA. Yo ya no sabía en qué pensaba… En el pasado de los demás, quizás…, en el pasado de gente maravillosa que nunca ha existido… Junto a la casa de mi madre corría un riachuelo… ¿Por qué correría, y por qué no correría más lejos o más cerca?… ¿Hay alguna razón para que cualquier cosa sea lo que es? ¿Hay en ello alguna razón verdadera y real como mis manos?…

SEGUNDA. Las manos no son verdaderas ni reales… Son misterios que habitan en nuestra vida… a veces, cuando miro mis manos, tengo miedo de Dios… No hay viento que mueva las llamas de las velas, y mirad, se mueven… ¿Para qué lado se inclinan? ¡Qué pena si alguien pudiera responder!… Siento deseos de oír músicas bárbaras que aún deben de estar tocando en palacios de otros continentes… Es siempre lejos de mi alma… Tal vez porque, de niña, corría tras las olas en la orilla. Llevaba la vida de la mano entre las rocas, con la marea baja, cuando el mar parece que ha cruzado las manos sobre su pecho y se ha dormido como una estatua de ángel para que nadie lo mire nunca más…

TERCERA. Vuestras frases me recuerdan mi alma…

SEGUNDA. Es tal vez porque no son verdaderas… Apenas sé que las digo… Las repito siguiendo una voz que no oigo y que me las susurra… Pero yo debo de haber vivido a la orilla del mar… Cada vez que algo ondea, lo amo… Hay olas en mi alma… Cuando camino, me mezo… Ahora me gustaría caminar… No lo hago porque nunca vale la pena hacer nada, sobre todo lo que se quiere hacer… De las montañas es de lo que tengo miedo… Es imposible que ellas sean tan firmes y grandes… Deben de tener un secreto de piedra, y se niegan a saber que lo tienen… Si desde esta ventana, al asomarme, pudiera dejar de ver las montañas, un momento se asomaría por mi alma alguien en quien yo me sintiera feliz…

PRIMERA. Yo amo las montañas… A este lado de todas las montañas es donde la vida es siempre fea… Al otro lado, donde habita mi madre, acostumbrábamos a sentarnos a la sombra de los tamarindos y a hablar de que iríamos a ver otras tierras… Todo allí era extenso y feliz como el canto de dos aves, una a cada lado del camino… El bosque no tenía más claros que nuestros pensamientos… Y nuestros sueños eran que los árboles no proyectaran en el suelo más calma que sus sombras… Fue ciertamente así como hemos vivido allí, yo y no sé si alguien más… Decidme que esto fue verdad para no tener que llorar…

SEGUNDA. Yo he vivido entre roquedos y observaba el mar… La orla de mi saya estaba fresca y salada al golpear mis piernas desnudas… Yo era pequeña y bárbara… Hoy tengo miedo de haber sido… En el presente me parece que duermo… Habladme de las hadas. Nunca he oído a nadie hablar de ellas… El mar era demasiado grande para pensar en ellas… En la vida nos consuela ser pequeños… ¿Eres feliz, hermana mía?

PRIMERA. Comienzo en este momento a haberlo sido antes… Además, todo aquello ha ocurrido en la sombra… Los árboles lo han vivido más que yo… Nunca ha llegado, ni yo apenas esperaba… Y tú, hermana, ¿por qué no hablas?

TERCERA. Me horroriza que os haya dicho de aquí a poco lo que voy a deciros. Mis palabras presentes, apenas las digo, pertenecerán inmediatamente al pasado, se quedarán fuera de mí, no sé dónde, rígidas y fatales… Hablo, y pienso en esto en mi garganta, y mis palabras me parecen gente… Tengo un miedo mayor que yo. Siento en mi mano, no sé cómo, la llave de una puerta desconocida. Y toda yo soy un amuleto o un sagrario que tuviera conciencia de sí mismo. Es por eso por lo que me asusta ir, como por un bosque oscuro, a través del misterio del habla… Y, al final, ¿quién sabe si yo soy así y si esto es sin duda lo que siento?

PRIMERA. ¡Cuesta tanto saber lo que sentimos cuando nos percatamos de nosotros mismos!… Incluso vivir cuesta tanto, cuando nos damos cuenta de ello… Hablad, pues, sin notar que existís… ¿No ibas a decirnos quién eres?

TERCERA. Lo que yo era antes ya no se acuerda que quién soy… ¡Lástima de la persona feliz que he sido!… He vivido entre las sombras de las ramas, y toda mi alma es hojas que se estremecen. Cuando camino al sol, mi sombra es fresca. He pasado la fuga de mis días al lado de las fuentes, donde yo mojaba, cuando soñaba que vivía, las puntas tranquilas de mis dedos… A veces, a la orilla de los lagos, me inclinaba y me miraba… Cuando sonreía, mis dientes eran misteriosos en el agua… Tenían una sonrisa solo de ellos, independiente de la mía… Era siempre sin razón como sonreía… Habladme de la muerte, del fin de todo, para sentir una razón para recordar…

PRIMERA. No hablemos de nada, de nada… Hace más frío, pero ¿por qué hace más frío? No hay razón para que haga más frío. No, no es que haga más frío… ¿Para qué tenemos que hablar?… Es mejor que cantemos, no sé por qué… El canto, cuando la gente canta de noche, es una persona alegre y sin miedo que entra de repente en el cuarto y lo anima a que nos consuele… Yo podía cantaros una canción que cantábamos en la casa de mi pasado. ¿Por qué no queréis que os la cante?

TERCERA. No vale la pena, hermana mía… cuando alguien canta, no puedo estar conmigo. Es preciso que no pueda recordarme. Y después, todo mi pasado se hace otro, y yo lloro una vida muerta que traigo conmigo y que nunca he vivido. Siempre es demasiado tarde para cantar, así como es siempre demasiado tarde para no cantar…

                                     (Pausa)

PRIMERA. Pronto será de día… Guardemos silencio… La vida así lo quiere. Junto a mi casa natal había un lago. Yo iba allí a sentarme junto a él, sobre un tronco de árbol que se había caído casi dentro del agua… Me sentaba en un extremo y mojaba en el agua los pies, estirando para abajo los dedos. Después miraba fijamente las puntas de los pies, pero no era para verlos. No sé por qué, pero me parece que este lago nunca ha existido… Acordarme de él es como no poder acordarme de nada… ¿Quién sabe por qué digo esto y si he sido yo quien ha vivido lo que recuerdo?…

SEGUNDA. A la orilla del mar estamos tristes cuando soñamos… No podemos ser lo que queremos ser, porque lo que queremos ser queremos siempre haberlo sido en el pasado… Cuando la ola se extiende y la espuma murmura, parece que hay mil voces mínimas que hablan. La espuma solo le parece fresca a quien la considera una… Todo es mucho, y nosotras no sabemos nada… ¿Queréis que os cuente lo que soñaba a la orilla del mar?

PRIMERA. Puedes contarlo, hermana mía; pero nada en nosotros necesita que nos lo cuentes… Si es hermoso, me da ya pena de llegar a haberlo oído. Y si no es hermoso, espera…, cuéntalo solo después de modificarlo…

SEGUNDA. Voy a decíroslo. No es completamente falso, porque sin duda nada es completamente falso. Debe de haber sido así… Un día en que estaba recostada en la superficie fría de un roquedo, y había olvidado que tenía padre y madre y había tenido infancia y otros días – ese día vi a lo lejos, como una cosa que yo solo pensara ver, el paso vago de una vela. Después cesó… Cuando me fijé en mí, vi que ya tenía ese sueño… No sé cuándo tuvo principio… Y nunca he vuelto a ver otra vela… Ninguna de las velas de los barcos que salen aquí de un puerto se parece a esa, incluso cuando hay luna y los barcos pasan a lo lejos despacio…

PRIMERA. Veo por la ventana un barco a lo lejos. Quizás sea el que tú viste…

SEGUNDA. No, hermana mía; ese que ves busca sin duda un puerto cualquiera… No podía ser que el que yo vi buscara un puerto…

PRIMERA. ¿Por qué me has respondido?… Puede ser… Yo no he visto ningún barco por la ventana… Deseaba verlo y te he hablado de él para no sentir pena… Cuéntanos ahora lo que soñaste junto a la orilla del mar…

SEGUNDA. Soñaba con un marinero que se había perdido en una isla lejana. En esa isla había palmeras derechas, pocas, y aves vagas las atravesaban… No vi si alguna vez se posaban… Desde que, tras naufragar, se salvó, el marinero vivía allí… Como él no tenía medios de volver a la patria, y como cada vez que se acordaba de ella, sufría, se puso a soñar con una patria que nunca había tenido; se puso a [soñar] que había sido suya otra patria, otra especie de país con otras especies de paisajes y otra gente y otro modo de pasar por las calles y de asomarse a las ventanas… Él, en sueño, construía cada hora esta falsa patria, y nunca dejaba de soñar, de día a la sombra breve de las grandes palmeras, que se recortaba, orlada de picos, en el suelo arenoso y caliente; de noche, tendido en la playa, de espaldas y sin fijarse en las estrellas.

PRIMERA. ¡No haber tenido un árbol que moteara sobre mis manos extendidas la sombra de un sueño como ese!…

TERCERA. Deja de hablar… No la interrumpas… Ella sabe palabras que las sirenas le han enseñado… Me duermo para poder escucharlas… Di, hermana mía, di… Mi corazón me duele por no haber sido tú cuando soñabas a la orilla del mar…

SEGUNDA. Durante años y años, día tras día, el marinero levantaba en un sueño continuo su nueva tierra nativa… Todos los días ponía una piedra en ese edificio imposible… En breve iba a tener un país que ya tantas veces había recorrido. Se acordaba de haber pasado ya miles de horas a lo largo de sus costas. Sabía de qué color solían ser los crepúsculos en una bahía del norte, y lo suave que era entrar, bien alta la noche, y con el alma recostada en el murmullo del agua que el barco separaba, en un gran puerto del sur en el que él había pasado antes, quizás feliz, sus mocedades supuestas…

(Pausa)

PRIMERA. Hermana mía, ¿por qué te callas?

SEGUNDA. No se debe hablar demasiado… La vida nos observa siempre… Cualquier hora es materna para los sueños, pero es necesario no saberlo… Cuando hablo demasiado comienzo a separarme de mí y a oírme hablar. Eso hace que me apiade de mí misma y que sienta demasiado el corazón. Entonces, tengo ganas lacrimosas de tenerlo en los brazos para mecerlo como a un hijo… Mirad: el horizonte palideció… El día ya no puede tardar… ¿Será necesario que os hable aún más de mi sueño?

PRIMERA. Cuenta siempre, hermana mía, cuenta siempre… No dejes de contar, ni adviertas que los días rayan… El día nunca raya para quien apoya la cabeza en el seno de las horas soñadas… No retuerzas las manos. Eso hace un ruido como el de una serpiente que huye… Háblanos mucho más de tu sueño. Es tan verdadero, que no tiene ningún sentido. Solo pensar que te oigo, la música suena en mi alma…

SEGUNDA. Sí, os hablaré más de él. También yo necesito contároslo. Conforme voy contándolo, es a mí misma a quien me lo cuento… Escuchan tres… (De repente, mirando el ataúd, y estremeciéndose). Tres no… No sé… No sé cuántas…

TERCERA. No hables así… Cuenta deprisa, cuéntalo otra vez… No hables de cuántos pueden oír… Nosotros nunca sabemos cuántas cosas viven y ven y escuchan realmente… Vuelve a tu sueño… El marinero. ¿Qué soñaba el marinero?

SEGUNDA (Más bajo, con una voz muy lenta). Al principio él creó los paisajes, después creó las ciudades; creó después las calles y las bocacalles, una tras otra, barrio tras barrio, hasta las murallas de los muelles donde él creó después los puertos… Una tras otra, las calles, y la gente que las recorría y que se asomaba a ellas desde las ventanas… Pasó a conocer a cierta gente, como quien las reconoce solo… Iba conociendo sus vidas pasadas y las conversaciones, y todo esto era como quien sueña apenas paisajes y los va viendo. Después viajaba, recordando, a través del país que había creado… Y así fue construyendo su pasado… Pronto tuvo otra vida anterior… Tenía ya, en esa nueva patria, un lugar donde había nacido, los lugares donde había pasado la juventud, los puertos en los que se había embarcado… Iba teniendo a los compañeros de la niñez y después a los amigos y a los enemigos de su edad viril… Todo era diferente de como él lo había tenido – ni el país, ni la gente, ni su propio pasado se parecían a lo que había sido… ¿Exigís que continúe?… ¡Me causa tanta pena hablar de esto!… Ahora, justo porque os hablo de esto, preferiría estar hablándoos de otros sueños…

TERCERA. Continúa, aunque no sepas por qué… Cuanto más te oigo, menos me pertenezco…

PRIMERA. ¿Estará realmente bien que continúes? ¿Debe tener fin cualquier historia? En todo caso, habla… Importa tan poco que hablemos o no… Velamos las horas que pasan… Nuestra tarea es tan inútil como la vida…

SEGUNDA. Un día en el que había llovido mucho y el horizonte estaba muy incierto, el marinero se cansó de soñar… Quiso entonces recordar su patria verdadera…, pero vio que no se acordaba de nada, que esta ya no existía para él… La infancia que recordaba era la de su patria de sueño; la adolescencia que rememoraba era la que había creado… Toda su vida había sido la vida que había soñado… Y él vio que no era posible que otra vida hubiera existido… Si él, ni de una calle, ni de una figura, ni de un gesto materno se acordaba… Y en la vida que le parecía haber soñado todo era real y había sido… Ni siquiera podía soñar otro pasado, concebir que hubiera sido otro, como todos un momento pueden creer… Oh, hermanas mías, hermanas mías… Hay una cosa, que no sé qué es, que no os he dicho… Una cosa que lo explicaría todo… Mi alma me hiela… Apenas sé si he estado hablando… Habladme, gritadme, para despertarme, para saber que estoy aquí ante vosotras y que hay cosas que solo son sueños…

PRIMERA (Con una voz muy baja). No sé qué decirte… No me atrevo a mirar las cosas… ¿Cómo sigue ese sueño?…

SEGUNDA. No sé cómo era el resto… Apenas sé cómo era el resto… ¿Por qué habrá más?…

PRIMERA. ¿Y qué ocurrió después?

SEGUNDA. ¿Después? ¿Después de qué? ¿Después es alguna cosa?… Un día vino un barco… Un día vino un barco… – Sí, sí… solo podía haber sido así… – Un día vino un barco, y pasó por esa isla, y no estaba allí el marinero.

TERCERA. Quizás había regresado a su patria… Pero ¿a cuál?

PRIMERA. Sí, ¿a cuál? ¿Y qué habría sido del marinero? ¿Lo sabe alguien?

SEGUNDA. ¿Por qué me lo preguntáis? ¿Hay respuesta para algo?

(Pausa)

TERCERA. ¿Será absolutamente necesario, incluso en tu sueño, que tenga que haber existido ese marinero y esa isla?

SEGUNDA. No, hermana mía; nada es absolutamente necesario.

PRIMERA. Al menos, ¿cómo acabó el sueño?

SEGUNDA. No acabó… No sé… Ningún sueño acaba… ¿Sé yo ciertamente si no continúo soñando, si no lo sueño sin saberlo, si soñarlo no es sino esta cosa vaga a la que yo llamo mi vida?… No, no me habléis más… Empiezo a estar segura de una cosa, que no sé qué es… Se me acercan, en una noche oscura que no es esta, los pasos de un horror que desconozco… ¿A quién habré despertado yo con el sueño mío que os he contado?… Tengo un miedo deforme a que Dios haya prohibido mi sueño… Él, sin duda, es más real de lo que Dios permite… No estéis calladas… decidme al menos que la noche está pasando, aunque yo lo sepa… Mirad, comienza a ser de día. Mirad: va a hacer un día real… Detengámonos… No pensemos más… No intentemos seguir esta aventura interior… ¿Quién sabe qué hay al final de ella?… Todo esto, hermanas mías, ha pasado de noche… No hablemos más de esto, ni a nosotras mismas… Es humano y conveniente que cada cual tome su actitud de tristeza.

TERCERA. Me ha resultado hermoso escucharte… No digas que no… Bien sé que no ha valido la pena… Es por eso por lo que lo he encontrado hermoso… No ha sido por eso, pero deja que lo diga… Por lo demás, la música de tu voz, que he escuchado aún más que tus palabras, me deja, tal vez porque es solo música, descontenta…

SEGUNDA. Todo nos deja descontentos, hermana mía… Los hombres que piensan se cansan de todo, porque todo cambia. Los hombres que pasan lo sufren, porque cambian con todo… Eterno y hermoso solo existe el sueño… ¿Por qué estamos hablando todavía?

PRIMERA. No sé… (mirando el ataúd, con voz más baja) – ¿Por qué se muere?

SEGUNDA. Tal vez por no soñar bastante…

PRIMERA. Es posible… ¿No valdría entonces la pena encerrarnos en el sueño y olvidarnos de la vida para que la muerte se olvidara de nosotros?

SEGUNDA. No, hermana mía, nada vale la pena…

TERCERA. Hermanas mías, ya es de día… Mirad, la línea de los montes se maravilla… ¿Por qué no lloramos?… La que finge estar allí era hermosa y joven como nosotras, y soñaba también… Estoy segura de que su sueño era el más hermoso de todos… ¿Qué soñaría ella?

PRIMERA. Habla más bajo. Ella quizás nos escucha, y ya sabe para qué sirven los sueños…

(Pausa)

SEGUNDA. Quizás nada de esto sea verdad… Todo este silencio y esta muerta y este día que comienza quizás no sean sino un sueño… Mirad bien todo esto… ¿Os parece que pertenece a la vida?

PRIMERA. No sé. No sé si es de la vida… ¡Ah, qué quieta estás! Y tus ojos parece que están  tristes inútilmente…

SEGUNDA. No vale la pena estar triste de otra manera… ¿No queréis que nos callemos? Es tan extraño que estemos viviendo… Todo lo que ocurre es increíble, tanto en la isla del marinero como en este mundo… Mirad, el cielo ya está verde… El horizonte sonríe oro… Siento que me arden los ojos, por haber pensado que lloraba…

PRIMERA. De hecho has llorado, hermana mía.

SEGUNDA. Quizás… No importa… ¿Qué frío es este?… Ah, es ahora… ¡es ahora!… Decidme esto… Decidme otra cosa más… ¿Por qué el marinero no será en todo esto la única cosa real, y nosotras y todo esto de aquí solo un sueño de él?…

PRIMERA. No hables más, no hables más… Eso es tan extraño, que debe ser verdad. No continúes… Lo que ibas a decir no sé qué es, pero debe ser demasiado para que el alma pueda oírlo… Tengo miedo de lo que no has llegado a decir… Mirad, mirad, ya es de día… Mirad el día… Haced todo lo posible por advertir solo el día, el día real, ahí fuera… Miradlo, miradlo… Consuela… No penséis, no miréis lo que pensáis… Mirad cómo llega el día… Brilla como el oro en una tierra de plata. Las leves nubes se redondean a medida que se colorean… ¿Y si nada existiese, hermanas mías?… ¿Y si todo fuera, de algún modo, absolutamente nada?… ¿Por qué miráis así?…

(No le responden. Y nadie ha mirado de ninguna manera.)

LA MISMA. ¿Qué me has dicho, que me ha asustado?… Lo he sentido tanto, que apenas he visto lo que era… Decidme qué ha sido, para no tener tanto miedo como antes, al oírlo por segunda vez… No, no… No digáis nada… No os pregunto esto para que me respondáis, sino solo para hablar, para no dejarme pensar… Tengo miedo de recordar lo que ha sido… Pero ha sido algo grande y pavoroso como que Dios existe… Deberíamos ya haber terminado de hablar… Hace tiempo ya que nuestra conversación ha perdido el sentido… Lo que hay entre nosotras y nos hace hablar se prolonga demasiado… Hay más presencias aquí que nuestras almas… El día debería ya haber rayado… Deberían ya haber despertado… Algo tarda… Todo tarda… ¿Que está pasando en las cosas de acuerdo con nuestro horror?… Ah, no me abandonéis… Hablad conmigo, hablad conmigo… Hablad al mismo tiempo que yo para no dejar sola mi voz… Tengo menos miedo de mi voz que de la idea de mi voz, dentro de mí, si advirtiera que estoy hablando…

TERCERA. ¿Qué voz es esa con la que hablas?… Es de otra… Viene como de una lejanía…

PRIMERA. No sé… No me recordéis eso… Habré hablado con la voz aguda y temblorosa del miedo… Pero ya no sé cómo se habla… Entre mí y mi voz se ha abierto un abismo… Todo esto, toda esta conversación y esta noche, y este miedo – todo esto debería haber terminado, debería haber terminado de repente, después del horror que nos has contado… Empiezo a sentir que lo olvido, eso que has dicho, y que me ha hecho pensar que yo debería gritar de un modo nuevo para expresar el horror de esos…

TERCERA (a la SEGUNDA). Hermana mía, no deberías habernos contado esa historia. Ahora me sorprendo viva con más horror. Contabas y yo me distraía tanto, que oía el sentido de tus palabras y el sonido por separado. Y me parecía que tú y tu voz y el sentido de lo que decías eran tres cosas diferentes, como tres criaturas que hablan y caminan.

SEGUNDA. Son realmente tres cosas diferentes, con vida propia y real. Dios quizás sepa por qué… Ah, pero ¿por qué hablamos? ¿Quién hace que continuemos hablando? ¿Por qué hablo sin querer hablar? ¿Por qué no nos damos cuenta de que es de día?…

PRIMERA. ¡Quién pudiera gritar para despertarnos! Estoy oyéndome gritar dentro de mí, pero ya no sé el camino de mi voluntad a mi garganta. Siento una necesidad feroz de tener miedo de que alguien pueda llamar a esa puerta. ¿Por qué no llama alguien a esa puerta? Sería imposible, y tengo necesidad de tener miedo de ello, de saber de qué tengo miedo… ¡Qué extraña me siento!… Me parece que ya no tengo mi voz… Una parte de mí se ha dormido y se ha quedado viendo… Mi pavor ha crecido, pero ya no sé sentirlo… Ya no sé en qué parte del alma es donde se siente… Le han puesto al sentimiento de mi cuerpo una mortaja de plomo… ¿Para qué nos has contado tu historia?

SEGUNDA. No me acuerdo ya… Apenas me acuerdo de haberla contado… ¡Parece que ha sido hace tanto tiempo!… ¡Qué sueño, qué sueño absorbe mi modo de mirar las cosas!… ¿Qué queremos hacer?, ¿qué pensamos hacer? – ya no sé si es hablar o no hablar…

PRIMERA. No hablemos más. A mí me cansa el esfuerzo que hacéis por hablar… Me duele el intervalo que hay entre lo que pensáis y lo que decís… Mi conciencia flota en la superficie de la somnolencia aterrorizada de mis sentidos en mi piel… No sé qué es esto, pero sé que lo siento… Necesito decir frases confusas un poco largas, que cuesten decirlas… ¿No sentís todo esto como una araña enorme que nos teje de un alma a otra una tela negra que nos prende?

SEGUNDA. No siento nada… Siento mis sensaciones como algo que se siente… ¿Quién estoy siendo?… ¿Quién está hablando con mi voz?… Ah, escuchad…

PRIMERA y TERCERA. ¿Quién ha sido?

SEGUNDA. Nada. No he oído nada… He querido fingir que oía para que supusierais que oíais y para poder creer yo que había algo que oír… Oh, qué horror, qué horror íntimo nos desata la voz del alma, y las sensaciones de los pensamientos, y nos hace hablar y sentir y pensar cuando todo en nosotros pide silencio y el día y la inconsciencia de la vida… ¿Quién es la quinta persona en este cuarto que extiende el brazo y nos interrumpe siempre que vamos a oírla?

PRIMERA. ¿Por qué intentas asustarme? No cabe más terror dentro de mí… Peso excesivamente en los brazos de sentirme. Me he hundido entera en el lodo tibio de lo que supongo que siento. Me entra por todos los sentidos algo que nos pega y nos vela. Me pesan los párpados en todas mis sensaciones. La lengua se prende a todos mis sentimientos. Un sueño hondo pega, una tras otra, las ideas de todos mis gestos. ¿Por qué me has mirado así?…

TERCERA (con una voz muy lenta y apagada). Ah, es ahora, es ahora… Sí, alguien se ha despertado… Hay gente que se despierta… Cuando alguien entre, todo esto acabará… Hasta entonces, intentemos creer que todo este horror ha sido un largo sueño que hemos dormido… Ya es de día. Todo va a acabar… Y de todo esto queda, hermana mía, que solo tú has sido feliz porque has creído en el sueño…

SEGUNDA. ¿Por qué me lo preguntáis? ¿Por qué lo he dicho? No, no creo…

 Un gallo canta. La luz, casi súbitamente, aumenta. Las tres veladoras se quedan calladas sin mirarse las unas a las otra. No muy lejos, en una calle, un vago coche gime y chirría.

Fragmentos dramáticos

SAKYAMUNI

SAKYAMUNI. Quantas vezes, antes de a verdade ter em mim a sua aurora, eu, já na antemanhã da revelação, quando a alma em mim pressentia a ilusão do mundo, dizia, dentro do meu coração, para o Mestre escondido que se aproximava: Deixa que ainda um momento eu descanse à sombra da árvore do esquecimento, e um momento mais me banhe nas águas do rio da Aparência. Suaves são as flores, e são falsas; doce, pela tarde de todos os estios, o canto morno das aves, e elas são aparência apenas. É quente ter pai ou mãe, e ter esposa e filhos, e tudo isso eu sei que não é mais, no Todo Imanente, que a sombra que a árvore lança no chão, e não o chão nem a árvore, do que o vento que passa e esquece, e não é o ar onde passa nem as árvores em que mexe, nem as flores cujo perfume leva para longe, entre cicios.

SEMICORO. Boddhisattva, todos são tentados e à passagem de todas as portas alguma cousa nos quer fazer olhar para o lado. Mas o sábio caminha sem olhar para o lado, porque à Direita está a Verdade falsa, e à Esquerda a Mentira verdadeira; uma e outra filhas do Lado e do Desvio, fruto sombrio da árvore do Aniquilamento.

SEMICORO. Os raios do sol não são o sol, nem o trigo o pão que há-de ser. Tudo, porém, é uma só cousa. Sete são as portas da Iniciação e todas as portas são a mesma Porta. Sete são os desejos que prendem o homem à terra e à ilusão, sete as libertações; sete, também, as renúncias com que a alma se liberta. Fazei por que a Morte guarde os portais do teu Desejo e a Peste caia por sobre as cidades da tua Ambição. Filho, as horas regulares medem o tempo para os homens, como os desejos e as esperanças marcam o tempo para as almas; mas as horas, como os desejos, são frutos da Árvore da Morte, a que damos o nome a Árvore da Vida. Boddhisattva, quem passa as sete portas, que lhe não doa deixar tanto amor? A mãe que velou a nossa infância, e o pai a quem confiámos os nossos primeiros cuidados, o irmão com quem nos sentávamos à porta, a irmã que vinha chamar-nos ao jardim; aquela que amámos e foi nossa esposa, e de quem são filhos os nossos filhos e irmãs as esperanças que temos na sua fortaleza e na sua sabedoria; os nossos filhos, que são a nossa sombra na carne, a nossa esperança feita Vida — tudo isto devemos nós considerar como o fumo que no silêncio da tarde deixa devagar os cimos das casas e se perde no ar como o voo das aves que não voltam nunca? Tivemos amigos, a quem demos aquela metade da nossa alma que é a confiança, e discípulos que quiseram receber da nossa mão a ciência, aquela esmola que não dá orgulho a quem a dá, e que não faz humildade em quem a recebe. Quisemos que os que eram nossos sócios na vida fossem felizes, que os propínquos nos amassem como a pais, e que os homens da nossa terra dissessem: ele foi entre nós como a sombra no estio e como a lareira no inverno; ele passou, ficando no exemplo e no nosso amor. Tudo isso, ó Boddhisattva, valerá tão pouco que hajamos de o pôr de lado como um fardo inútil, ou que passar por cima dele como por cima do riacho que atravessa o caminho? Tudo quanto vimos somos nós, e tudo quanto amámos somos nós. A tua mãe e o teu pai és tu, a tua esposa és tu, e és tu os teus próprios filhos. O que desejaste e o que amaste é o corpo do teu desejo, feito não da terra, mas da alma, não do barro das horas, mas do limo humilde das afeições. Se houvéssemos só de deixar aquilo que não amamos, que mais valeríamos ante o Invisível que os animais do campo, que fogem ao que temem, e abandonam o que não querem? Matai o desejo, e ao amor crucificai-o, para que ao terceiro dia da Renúncia suba ao céu e assente à mão direita da Primeira Encarnação do Invisível. Todos os laços são cadeias, e ergástulos todos os lares. Sobe, Discípulo, o caminho estreito; busca perder-te para te encontrares, abdica-te de ti para seres tu; entra na noite para encontrares o dia. Tudo é o contrário e a sombra cerca-nos. Dorme para a ilusão do Mundo.

A. Boddhisattva, estás agora quase no princípio e no fim do caminho (sem fim nem princípio). Ouvem-se já os teus passos para além do Grande Limiar. Breve, sem tempo em que seja breve, teu vulto sem corpo florirá a libertação final. A veste esplêndida que torna invisível a Personalidade cairá, ó Senhor, sobre os teus ombros. Bendito sejas tu que, pelo teu grande amor, ganhaste a Altura e a Redenção!

B. Bendito sejas, que chorando cegaste até veres, e sofrendo te rojaste até ao Cimo. Bendito, que vais vestir como um manto régio a negação positiva do Universo! Bendito que viveste o puro Amor, sem limites nem margens, e agora és o oceano de ti próprio, a hora absoluta do teu compassivo meditar!

A. Teus pés, Boddhisattva, rasgaram-se nas pedras de todos as caminhos da piedade, tuas mãos sangraram com todas as durezas da misericórdia, teus olhos secaram de terem chorado por todas as angústias, teus ouvidos não ouviram senão os gemidos. Agora teu amor chegou ao limiar de seres o mesmo que o Todo sem nome. Vais entrar para o sossego imenso de ti próprio, absoluto idêntico com todos os absolutos, pessoa infinita de todos os universos.

B. Bendito e exaltado sejas! Tanto amaste, que hoje és tu próprio em abstracto e divino. Tanto choraste que és hoje a lágrima suprema, a queda misericordiosa e sublime no abismo impessoal do teu Amor. Tanto desejaste todos os teus bens para todos os homens, tanto amaste Tudo em todos, tanto benzeste de auxílio e de carinho todos em Tudo, que hoje entrarás para Ti pela porta todas-as-portas, chegarás a ti pela negação absoluta de ti próprio. Bendito sejas!

O NIRVANA. Repousa no meu seio, que és tu, na minha certeza, que é que o atingiste em ti. Na minha noite não há escuridão nem luz, e no meu sossego não há descanso nem paz. Dorme de todo o teu amor pelos outros na minha recompensa sem estrelas.

[SAKYAMUNI]. Onde pus o meu amor ele está ainda. Onde amei, amo. Onde chorei, ainda choro. Onde consolei, consolo. Que será de mim se entrar para a paz, se o mundo não tem a paz? Que será de mim se entrar para Mim, com toda a Mágoa fora de mim e toda a imperfeição abandonada como um filho. A tua paz suprema é uma tentação sem forma; a tua recompensa é o sossego que eu não quero… Não me abras os braços, ó Nirvana!…

NIRVANA. Suaves são os meus braços de sombra e os meus cabelos de esquecimento — em torno à tua alma absoluta eles se enrolarão como a Verdade Eterna. Embalar-te-á sem movimento, para sempre além de sempre, o meu colo sem fundo nem lugar, e o teu sono será o amor que tiveste, e bondade que derramaste, e as lágrimas (…) do mundo.

[SAKYAMUNI]. Ai dos que sofrem, que sofrem ainda! Ai dos que gemem que gemem sempre! Ai dos tristes e dos oprimidos, que eu deixaria ao desamparo na tua noite em que nada lembra — nem os rios do meu amor nem as areias do meu carinho. Tu não tens poder para me tentar. Sete, e dentro de sete, sete vezes sete, foram as tentações do meu caminho. Chamaram por mim as cousas da terra, com vozes de filho que chamam a mãe. Choraram por mim como (…) Passei para além de tudo como o rio, que flui para o mar, e que, se não vai pela direita, é pela esquerda, e vai sempre, e o mar espera-o ao longe.

[SAKYAMUNI]. Ó olhos da Ciência, ó Braços da Compaixão! Encarnarei em mim todo o mal do mundo — o mal passado e o mal presente e o mal futuro. Assim me tornarei o Mal Absoluto. E como o mal é o nome positivo da Negação, tornado que eu seja o Mal Absoluto, estarei tornado o Nada Absoluto, e, logo, extinto completamente morto de todo, sem passado em que houvesse sido, ou futuro em que venha a ser, ou presente, mesmo, em que seja mesmo o Nada em que me haja tornado. Serei o Único Morto, a Morte Toda. E, fora de Mim, o Ser Puro; o Universo liberto do mal e da negação, será Deus em todas as eternidades.

— E de ti, ó Sol do Amor, que será? Poderás tu escolher o Nada e o Mal e a Morte só para ti? Ousarás tu querer esse sacrifício da estatura do Infinito? Tu, que te afastaste do Mal, como poderás tu dar-te a ele até seres o seu corpo? Tu, que negaste a negação, poderás tu transformar-te nela? Poderás tu ser Deus com o Corpo da sombra e da maldade?

— Tudo é possível ao Amor. Ele, que na sua humana forma humana constrói pontes sobre os abismos, e abre estradas de impossível para impossível, em mim, tornado absoluto, será o Fogo sem Chama ascendendo todo o Universo.

B[OUDHISATTVA]. A carne do meu corpo é a dor universal, corre nas veias da minha vida o sangue das lágrimas dos homens.

N[IRVANA]. Grande é o repouso do meu seio de sonhos. A minha noite não tem o cansaço e a angústia de ter um dia depois dela, (ó Venerável) Arhat, os meus braços são de Vida e Esquecimento…

B[OUDHISATTVA]. Grande é aquele que, não querendo possuir, também não quer esquecer. Todas as mães são a minha mãe que chora, todas as filhas são as minhas filhas que me chamam. A tua porta aberta está fechada dentro do meu amor (…) o meu ser compassivo torna-se o ser universal. O manto da minha compaixão cairá sobre as cousas e elas terão o repouso de não verem a luz da ilusão. Eu próprio, pelo meu grande amor, serei o Nirvana. Terão repouso e fim na carne da minha alma todas as almas que sofrem.

N[IRVANA]. Arhat, o rio não volta à nascente, nem (…)

[SEMICORO]. A. Tornado a Negação Absoluta, extinguir-te-ás de todo, ó Boddhisattva. O único Nada serás tu. O resto será o grande e puro, limpo e uno Universo. A tua Morte será a vida de tudo. Tornado a Diversidade Absoluta, o Abismo Puro, morrerás de ti próprio. E tudo será o Nirvana atingido, e o Fim [dourado] da Estrada. O resto é o nada onde tu és a morte sem nada seres. O teu sacrifício não tem Deus. A tua Renúncia é um universo — o universo-abismo, o abismo do abismo, o Nada não em si mas em Nada.

B. Mas que é feito de ti, Senhor, quando assim for? Tu, [o supremo] Bem, por o seres te tenta o Mal Absoluto. Tu, o Tudo, te tenta o Nada. Vede como nesse futuro sem tempo, todo o Universo dos Universos se ergue uno e divino. O mal, tornado mal absoluto, torna-se o puro Nada, e, assim, para sempre desaparece. Tu, Senhor, por teu amor sem limite nem prémio, tu te tornaste o puro Nada para que o mundo pudesse ser Tudo; tu te tornaste a Única Morte, a Morte…

A. Agora que renunciaste para sempre, que te condenaste eternamente à dor eterna; agora que, sem lar nem mesmo em ti próprio, sem mãe mesmo no teu carinho, te arrastas puro de dor, pelo erro doloroso do mundo — agora que será de ti, ó Senhor da Compaixão? Sofre o mundo ainda, embora o alivies, morre a vida ainda, embora a ames? Tens mais que matar em ti, para que o mundo viva? Pára, não ouses mais mágoas e mais dores. Há mais dores, acaso, que tu ouses? Há mais mágoas que atentes contra ti? Derrama eternamente, homem eterno, o bálsamo do teu carinho sobre as cousas. Rocio, amacia de brilhantes o verde matutino das ervas, e de luzes de sol agora limpa a superfície nítida das flores. Corre, suave sussurro, nos rios para todos os mares (1). Renunciaste à vida pessoal, ó Boddhisattva, e renunciaste à vida impessoal. Que mais alturas te matas?

— Renunciarei agora a toda a Vida, morrerei de todo no mundo. Que vale essa frase sem lugar que enche de sombra e de medo os olhos inúmeros do mundo?

— Senhor, tu vais ser todos os crimes, todos os vícios, todos os males, Senhor, vais ser todas as algemas e todos os algemadores. Como podes tu querer ser o Mal, como podes tu querer ser a limitação?

—Tornado uno com o mal, com a imperfeição e com a mágoa, impersonalizá-los-ei em mim. E o mundo dividido e diverso, o universo múltiplo e sucessivo, tornado impessoal em mim, deixará de ser dividido para ser uno, deixará de ser imperfeito para ser a Perfeição Suprema.

— E tu, Senhor, que serás?

— Tornado o Puro Mal, o Puro Imperfeito, deixarei de todo de ser. Encarnará em Mim o Nada Absoluto e eu tornado o Abstracto (…)

[CORO]. Benditos sejam os prados, porque não serão mais os prados, e os bosques porque não serão mais os bosques, e o correr dos rios, porque não será mais de rios, nem será correr. Tudo será como era, e a Perfeição.

— O SER SEM SER — Só eu sou. Tudo é uno e tudo não é uno. Nada é e tudo é. E tudo isto é nada. Só eu sou.

Além de tudo está tudo, e aquém de nada, nada. Só eu sou.
Tudo é o ser, e tudo é o não ser. Só eu sou.
Sem ser nem não ser, só eu sou.

[CORO]. Todo este futuro sem tempo é o meu passado. Só eu sou. Para sempre de sempre num lugar sem espaço, num futuro sem tempo, Senhor!

2.º — Quem sabe se ele, tornado o Nada, não foi um Todo para outro Deus, de quem este seja a diferença ou o sonho? Quem sabe se ele não é o Todo por ter morrido (para) Tudo?

 

 

Fim

Brilhai eternamente no tempo, astro do mundo em que brilhais. Voai sem fim nem cansaço, aves da terra de que sois aves.

[CORO] – Cantai nas árvores das estradas, ó aves que consolais o ouvido dos tristes! Correi docemente na sombra, ó fontes! Dormi quietos na relva calma, ó feras agora em sossego! Dai a vossa alegria a todos os ventos, cantai a vitória do amor em todas as brisas! Morreu a sua vida o Salvador do Mundo!

Para Ele não haverá nada. Só para Ele nada haverá! Tudo quanto sofreu será consolado nesta hora sem tempo. Tudo quanto fez mal agora passará a nunca o ter feito. Tudo quanto sofreu o mal feito eis que nunca sofreu hoje, e nunca soube o que era o sofrimento! Só Ele, o Coração Amante do Universo, é volvido a Sombra e [o] Apagamento! Só Ele vai esquecer de todo, levando em seu seio nocturno todo o mal que nele concebeu para alívio e descanso do Mundo. Só Ele desaparece, só Ele é nada. O próprio amor a ele acabará, porque ele acabará. Não há para ele a recompensa, porque ele passa agora, no triunfo maior do que os deuses, a não ser nada, a nunca ter sido cousa nenhuma. Através do Sofrimento Absoluto ele entra na Morte sem resgate.

O Mundo é livre! O Mundo é Deus! As cousas renascem em extemporâneo e Divino!

Raiam Deus todas as luzes, aquiescem Deus todas as Sombras, todos os espaços são Deus.

As flores desabrocham Deus, cada árvore é uma divindade todas elas, cada folha é Deus Todo.

Este é o Mundo! Este é o Mundo! Nunca houve tempo nem espaço! Nunca houve alegria nem dor!

O que era bom é hoje o Bem. O que era doce e humano na imperfeição é hoje a Perfeição.

Tudo quanto era divisão de repente (?) não é, nem nunca foi (subitamente nunca foi).

O que se perdeu nunca se tinha perdido!

As pequenas ternuras são grandes hoje com o calor de pequenas. As afeições da terra são hoje do Céu em que a terra toda está. Todos os filhos estão com todas as mães. Nada falta, nada sobra, nada limita. Tudo é tudo em Deus.

[CORO] – Acabou o amor, porque nada se busca, estando tudo encontrado. O que era amado por ser pequeno continua a ser amado por ser pequeno, mas é grande. O que era amado por ser humano continua a ser amado por ser humano, mas é divino. O que era amado por ser imperfeito continua a ser amado por ser imperfeito, mas é perfeito. Tudo tem o que tinha de belo e Deus a mais. Tudo está liberto. Nada era em vão.

s.d

(1) «As três renúncias de Sakyamuni:
a) a renúncia à vida terrena, à vida das emoções, a renúncia à vida da personalidade.
b) a renúncia à vida nirvânica, a recusa a vestir a veste de Nirmanakaya.
c) a renúncia à vida impessoal, à vida pura e grande, para se tornar humano e interior às cousas do mundo, esgotando através de si todo o mal que no mundo existe.»

Fragmentos dramáticos

SAKYAMUNI

SAKYAMUNI. Cuántas veces, antes de que la verdad tuviera en mí su aurora, ya en el albor de la revelación, cuando el alma en mí presentía la ilusión del mundo, yo le decía, dentro de mi corazón, al Maestro escondido que se acercaba: Déjame aún un momento descansar a la sombra del árbol del olvido, y bañarme en las aguas del río de la apariencia. Suaves son las flores, y falsas; dulce, en la tarde de todos los veranos, el canto tibio de las aves, y ellas son solo apariencia. Es cálido tener padre y madre, tener esposa e hijos, y todo eso sé que no es, en el Todo Inmanente, sino la sombra que el árbol deja en el suelo, y no el suelo en el árbol, no es más que el viento que pasa y olvida, y no el aire por el que pasa ni los árboles en que se mueve, ni las flores cuyo perfume lleva lejos, entre susurros.

SEMICORO. Bodhisattva, todos se ven tentados y al paso de todas las puertas algo pretende que miremos para el lado. Pero el sabio camina sin mirar para el lado, porque a la derecha está la Verdad falsa, y a la Izquierda, la Mentira verdadera; una y otra, hijas del Lado y del Desvío, fruto sombrío del árbol de la Aniquilación.

SEMICORO. Los rayos del sol no son el sol, ni el trigo es el pan que será. Todo, sin embargo, es una misma cosa. Siete son las puertas de la Iniciación, y todas las puertas son la misma Puerta. Siete son los deseos que prenden al hombre a la tierra y a la ilusión, siete las liberaciones; siete, también, las renuncias con las que el alma se libera. Haz que la Muerte guarde los portales de tu Deseo y la Peste caiga sobre las ciudades de tu Ambición. Hijo, las horas regulares miden el tiempo de los hombres, como los deseos y las esperanzas marcan el tiempo de las almas; pero las horas, como los deseos, son frutos del Árbol de la Muerte, al que le damos el nombre de Árbol de la Vida. Bodhisattva, a quien pasa las siete puertas, ¿cómo no le va a doler dejar tanto amor? La madre que veló nuestra infancia, y el padre a quien le confiamos nuestros primeros cuidados, el hermano con el que nos sentábamos a la puerta, la hermana que venía a llamarnos al jardín; la que amamos y fue nuestra esposa, y de quien son hijos nuestros hijos y hermanas las esperanzas que tenemos en su fortaleza y en su sabiduría; nuestros hijos, que son nuestra sombra en la carne, nuestra esperanza hecha Vida – ¿todo esto debemos considerarlo el humo que en el silencio de la tarde deja despacio las cimas de las casas y se pierde en el aire como el vuelo de las aves que no vuelven nunca? Tuvimos amigos, a quienes les dimos esa mitad de nuestra alma que es la confianza, y discípulos que quisieron recibir de nuestra mano la ciencia, esa limosna que no da orgullo a quien la da, y que no hace humilde a quien la recibe. Quisimos que los que eran nuestros compañeros en la vida fueran felices, que los próximos nos amaran como a padres, y que los hombres de nuestra tierra dijeran: él estuvo entre nosotros como la sombra del verano y como el hogar del invierno; él pasó, quedándose en el ejemplo y en nuestro amor. ¿Todo esto, oh Bodhisattva, valdrá tan poco que tendremos que ponerlo al lado como un fardo inútil, o pasar por encima de él como por encima del riachuelo que atraviesa el camino? Somos todo lo que vimos, y somos lo que amamos. Tu madre y tu padre eres tú, tu esposa eres tú, y eres tus propios hijos. Lo que deseaste y lo que amaste es el cuerpo de tu deseo, hecho no de tierra, sino de alma, no del barro de las horas, sino del limo humilde de los afectos. Si tuviéramos que dejar solo lo que no amamos, ¿cómo valdríamos ante el Invisible más que los animales del campo, que huyen de lo que temen y abandonan lo que no quieren? Mata el deseo, y crucifícalo por el amor, para que al tercer día de la Renuncia suba al cielo y se siente a la mano derecha de la Primera Encarnación de lo Invisible. Todos los lazos son cadenas, y prisiones todos los hogares. Sube, Discípulo, la senda estrecha; intenta perderte para encontrarte, abdica de ti para ser tú; entra en la noche para encontrar el día. Todo es lo contrario y la sombra nos cerca. Duérmete a la ilusión del Mundo.

A. Bodhisattva, ahora estás casi al principio y al final del camino (sin fin ni principio). Ya se oyen tus pasos al otro lado del Gran Límite. Breve, sin tiempo en que sea breve, tu bulto sin cuerpo florecerá en la liberación final. La túnica espléndida que hace invisible la Personalidad caerá, oh Señor, sobre tus hombros. ¡Bendito seas tú que por tu gran amor ganaste la Altura y la Redención!

B. Bendito seas, pues llorando cegaste hasta ver, y sufriendo te lanzaste hasta la Cima. ¡Bendito, pues vas a vestir como un manto regio la negación positiva del Universo! ¡Bendito, pues viviste el puro Amor, sin límites ni márgenes, y ahora eres el océano de ti mismo, la hora absoluta de tu compasiva meditación!

A. Tus pies, Bodhisattava, se rasgaron en las piedras de todos los caminos de la piedad, tus manos sangraron con todas las durezas de la misericordia, tus ojos se secaron por haber llorado por todas las angustias, tus oídos no oyeron sino los gemidos. Ahora tu amor llegó al límite de ser el mismo que el Todo sin nombre. Vas a entrar en el sosiego inmenso de ti mismo, absoluto, idéntico a todos los absolutos, persona infinita de todos los universos.

B. ¡Bendito y exaltado seas! Tanto amaste, que hoy eres tú mismo abstracto y divino. Tanto lloraste, que hoy eres la lágrima suprema, la caída misericordiosa y sublime en el abismo impersonal de tu Amor. Tanto deseaste todos tus bienes para los hombres, tanto amaste Todo en todos, tanto bendijiste con auxilio y cariño a todos en Todo, que hoy entrarás en ti por la puerta todas-las-puertas, llegarás a ti por la negación absoluta de ti mismo. ¡Bendito seas!

NIRVANA. Reposa en mi seno, pues tú eres, en mi certeza, lo que alcanzaste en ti. En mi noche no hay oscuridad ni luz, y en mi sosiego no hay descanso ni paz. Duerme por completo tu amor por los demás en mi recompensa sin estrellas.

[SAKYAMUNI]. Mi amor está aún donde lo puse. Donde amé, amo. Donde lloré, aún lloro. Donde consolé, consuelo. ¿Qué será de mí si entrara en la paz, si el mundo no tiene paz? ¿Qué será de mí si entrara en Mí, con toda la Pena fuera de mí y toda la imperfección abandonada como a un hijo? Tu paz suprema es una tentación sin forma; tu recompensa es el sosiego que yo no quiero… ¡No me abras los brazos, oh Nirvana!…

NIRVANA. Suaves son mis brazos de sombra y mis cabellos de olvido – en torno a tu alma absoluta, ellos se envolverán como la Verdad Eterna. Te mecerá sin movimiento, siempre más allá de siempre, mi seno sin fondo ni lugar, y tu sueño será el amor que tuviste, y la bondad que derramaste, y las lágrimas (…) del mundo.

[SAKYAMUNI]. ¡Ay de los que sufren, que aún sufren! ¡Ay de los que gimen, que gimen siempre! ¡Ay de los tristes y de los oprimidos, a los que yo dejaría desamparados en tu noche en la que nada se recuerda – ni los ríos de mi amor ni las arenas de mi cariño! Tú no tienes poder para tentarme. Siete, y dentro de siete, siete veces siete, fueron las tentaciones de mi camino. Me llamaron las cosas de la tierra, con voces de hijo que llaman a la madre. Lloraron por mí como (…) Pasé más allá de todo como el río que fluye hacia el mar y que, si no va por la derecha, es por la izquierda, y va siempre, y el mar lo espera a lo lejos.

[SAKYAMUNI]. ¡Oh ojos de la ciencia, oh Brazos de la Compasión! Encarnaré en mí todo el mal del mundo – el mal pasado y el mal presente y el mal futuro. Así me volveré el Mal Absoluto. Y dado que el mal es el nombre positivo de la Negación, apenas me haya vuelto el Mal Absoluto, me habré vuelto la Nada Absoluta, y, luego, extinguido completamente, muerto del todo, sin pasado en que haya sido, o futuro en el que llegue a ser, o presente mismo en el que sea la misma Nada en la que me haya vuelto. Seré el Único Muerto, la Muerte Toda. Y, fuera de mí, el Ser Puro; una vez que el Universo se haya liberado del mal y de la negación, será Dios en todas las eternidades. 

– Y de ti, oh Sol de Amor, ¿qué será? ¿Podrás escoger la Nada y el Mal y la Muerte solo para ti? ¿Te atreverás con ese sacrificio de la estatura del Infinito? Tú, que te apartaste del Mal, ¿cómo podrás entregarte a él hasta ser su cuerpo? Tú, que negaste la negación, ¿podrás transformarte en ella? ¿Podrás ser Dios con el Cuerpo de la sombra y de la maldad?

– Todo es posible para el Amor. Él, que en su humana forma construye puentes sobre los abismos, y abre caminos desde lo imposible hasta lo imposible, en mí, vuelto absoluto, será el Fuego sin Llama que escala todo el Universo.

B[ODHISATTVA]. La carne de mi cuerpo es el dolor universal, corre por las venas de mi vida la sangre de las lágrimas de los hombres.

N[IRVANA]. Grande es el reposo de mi seno de sueños. Mi noche no tiene el cansancio y la angustia de tener un día después de ella, (oh Venerable) Arhat, mis brazos son de Vida y Olvido…

B[ODHISATTVA]. Grande es el que, no queriendo poseer, tampoco quiere olvidar. Todas las madres son mi madre que llora, todas las hijas son mis hijas que me llaman. Tu puerta abierta está cerrada dentro de mi amor (…), mi ser compasivo se vuelve el ser universal. El manto de mi compasión caerá sobre las cosas y ellas tendrán el reposo de no ver la luz de la ilusión. Yo mismo, por mi gran amor, seré el Nirvana. Tendrán reposo y fin en la carne de mi alma todas las almas que sufren.

N[IRVANA]. Arhat, el río no vuelve a su nacimiento, ni (…)

[SEMICORO]. A. Convertido en la Negación Absoluta, te extinguirás del todo, oh Bodhisattva. La única Nada serás tú. El resto será el Universo, grande y puro, limpio y uno. Tu Muerte será la vida de todo. Convertido en la Diversidad Absoluta, el Abismo Puro, morirás de ti mismo. Y todo será el Nirvana alcanzado, y el Fin [dorado] del Camino. El resto es la nada en la que tú eres la muerte sin ser nada. Tu sacrificio no tiene Dios. Tu Renuncia es un universo – el universo-abismo, el abismo del abismo, la Nada no en sí, sino en Nada.

B. Pero ¿qué será de ti, Señor, cuando sea así? A ti, [el supremo] Bien, por serlo, te tienta el Mal Absoluto. A ti, el Todo, te tienta la Nada. Mira cómo en ese futuro sin tiempo, todo el Universo de los Universos se yergue uno y divino. El mal, convertido en mal absoluto, se convierte en la pura Nada, y así, para siempre desaparece. Tú, Señor, por tu amor sin límite ni premio, te convertiste en la pura Nada para que el mundo pudiera serlo Todo; tú te convertiste en la Única Muerte, la Muerte…

A. Ahora que renunciaste para siempre, que te condenaste eternamente al dolor eterno; ahora que, sin hogar ni siquiera en ti mismo, sin madre siquiera en tu cariño, te arrastras puro de dolor, por el error doloroso del mundo – ahora, ¿qué será de ti, oh Señor de la Compasión? ¿El mundo no sufre aún, aunque lo alivies?, ¿no muere la vida aún, aunque la ames? ¿Tienes algo más que matar en ti para que el mundo viva? Para, no te atrevas con más penas y más dolores. ¿Hay acaso más dolores con los que te atreves? ¿Hay más penas con las que atentes contra ti? Derrama eternamente, hombre eterno, el bálsamo de tu cariño sobre las cosas. Rocío, ablanda con brillantes el verdor matutino de las hierbas, y con luces de sol, ahora, limpia la superficie nítida de las flores. Corre, suave susurro, en los ríos hacia todos los mares.(1) Renunciaste a la vida personal, oh Bodhisattva, y renunciaste a la vida impersonal. ¿Qué otras dignidades sacrificas?

– Renunciaré ahora a toda la Vida, moriré del todo en el mundo. ¿Qué vale esa frase sin lugar que llena de sombra y de miedo los innumerables ojos del mundo?

– Señor, vas a ser todos los crímenes, todos los vicios, todos los males, Señor, vas a ser todas las cadenas y todos los apresadores. ¿Cómo puedes querer ser el Mal, cómo puedes querer ser la limitación?

– Vuelto uno con el mal, con la imperfección y con la pena, se harán impersonales en mí. Y el mundo dividido y diverso, el universo múltiple y sucesivo, vuelto impersonal en mí, dejará de estar dividido para ser uno, dejará de ser imperfecto para ser la Perfección Suprema.

– Y tú, Señor, ¿qué serás?

– Convertido en el Puro Mal, en el Puro Imperfecto, dejaré de ser del todo. Se encarnará en Mí la Nada Absoluta, y yo, vuelto el Abstracto (…)

[CORO]. Benditos sean los prados, porque no serán ya los prados, y los bosques porque ya no serán los bosques, y el curso de los ríos, porque ya no serán de los ríos, ni serán cursos. Todo será como era, la Perfección.

– EL SER SIN SER – Solo yo soy. Todo es uno y todo no es uno. Nada es y todo es. Y todo esto es nada. Solo yo soy.

      Más allá de todo está todo, y a este lado de nada, nada. Solo yo soy.
    Todo es el ser, y todo es el no ser. Solo yo soy.
    Sin ser ni no ser, solo yo soy.

[CORO]. Todo este futuro sin tiempo es mi pasado. Solo yo soy. ¡Por siempre de siempre, en un lugar sin espacio, en un futuro sin tiempo, Señor!

2.º ¿Quién sabe si él, convertido en Nada, no fue un Todo para otro Dios de quien este sea la diferencia o el sueño? ¿Quién sabe si él no es Todo por haber muerto (para) Todo?

Fin

Brilla eternamente en el tiempo, astro del mundo en que brillas. Volad sin fin ni cansancio, aves de la tierra de la que sois aves.

[CORO] ¡Cantad en los árboles de los caminos, oh aves que consoláis el oído de los tristes! ¡Corred dulcemente a la sombra, oh fuentes! ¡Dormid tranquilas en la calmada arena, oh fieras ahora en sosiego! ¡Dadles a todos los vientos vuestra alegría, cantad la victoria del amor en todas las brisas! ¡Murió para su vida el Salvador del Mundo!

Para Él no habrá nada. ¡Solo para Él no habrá nada! Todo lo que sufrió será consolado en esta hora sin tiempo. Todo lo que hizo mal ahora pasará a no haber sido hecho nunca. ¡Todo lo injusto que sufrió, he aquí que hoy ya no lo sufre, y ya no sabe qué era el sufrimiento! ¡Solo Él, el Corazón Amante del Universo, se ha vuelto la Sombra y el Apagamiento! Solo Él va a olvidarse de todo, llevando en su seno nocturno todo el mal que en él concibió para alivio y descanso del Mundo. Solo Él desaparece, solo Él es nada. El propio amor a sí mismo acabará, porque Él acabará. No hay recompensa para Él, porque él llega ahora, en un triunfo mayor que el de los dioses, a no ser nada, a no haber sido nunca nada. A través del Sufrimiento Absoluto Él entra en la Muerte sin rescate.

¡El Mundo es libre! ¡El Mundo es Dios! ¡Las cosas renacen extemporáneas y divinas!

Amanecen en Dios todas las luces, acceden a Dios todas las Sombras, todos los espacios son Dios.

Las flores se abren en Dios, cada árbol es una divinidad, todos ellos, cada hoja es Dios Todo.

¡Este es el Mundo! ¡Este es el Mundo! ¡Nunca hubo tiempo ni espacio! ¡Nunca hubo alegría ni dolor!

Lo que era bueno es hoy el Bien. Lo que era dulce y humano en la imperfección es hoy la Perfección.

Todo lo que era de pronto división (?) no existe, y nunca existió (súbitamente nunca existió).

¡Lo que se perdió nunca se había perdido!

Las pequeñas ternuras son grandes hoy con el calor de las pequeñas. Los afectos de la tierra son hoy del Cielo en el que la tierra entera está. Todos los hijos están con todas las madres, nada sobra, nada limita. Todo es todo en Dios.

[CORO] Acabó el amor, porque nada se busca, al haberse encontrado todo. Lo que era amado por ser pequeño continúa siendo amado por ser pequeño, pero es grande. Lo que era amado por ser humano continúa siendo amado por ser humano, pero es divino. Lo que era amado por ser imperfecto continúa siendo amado por ser imperfecto, pero es perfecto. Todo tiene lo que tenía de hermoso y, además, a Dios. Todo está liberado. Nada era en vano.

 

(1) Las tres renuncias de Sakyamuni:
a) la renuncia a la vida terrena, a la vida de las emociones, la renuncia a la vida de la personalidad.
b) la renuncia a la vida nirvánica, el rechazo a vestir la túnica de NirmanaKaya.
c) la renuncia a la vida impersonal, a la vida pura y grande, para volverse humano e interior a las cosas del mundo, agotando a través de sí todo el mal que en el mundo existe.

DIÁLOGO NA SOMBRA

A. Quisera saber como és feito por dentro… Como é a tua vontade por dentro, que coisas há naquela parte do teu sentir que tu não medes que sentes.

E. Tão feminina nisso… E és da matéria das coisas irreais!

A. Quando levantas um braço eu queria saber porque coisas do além, tu levantas esse braço… O que há por detrás de o tu quereres levantar e de saberes porque o queres levantar? Vim contigo há tanto e não sei quem tu és… Reparo às vezes nos pequenos gestos que fazes e vejo quão pouco sei de ti…

E. Eu próprio não sei quem eu sou… Meus gestos são entes estranhos quando reparo neles, e sombras incertas quando não reparo. São uma perpétua revelação a mim próprio. Sou tão exterior a conhecer-me como o mundo externo… Entre o meu querer erguer um braço e ele erguer-se vai um intervalo divino… Transponho, entre pensar e falar, um abismo sem fundo humano.

A. Eu sou simples como uma pedra no caminho ou uma rosa numa roseira.

E. És simples porque não te espelhas em ti. Uma pedra no caminho é (atónita) um mistério igual a Deus… Uma rosa numa roseira é tão compreensível como a Vida…

A. Olho-te e amo-te e não te possuo nunca. Floriram em (…) as rosas do meu jardim… Acompanho-te e perco-te sempre que olho para ti.

E. Eu próprio não me acompanho… como poderás tu acompanhar-me? Vejo meus pés andar como quem vê passar um cortejo humano nas distâncias e na noite… Reparo na minha sombra como numa face desconhecida que espreitou de fora à janela da minha moradia… Não compreendo nada… Não compreendo nada.

A. Mas há coisas que tu compreendes e que nunca me confessas. Falas-me dos teus amores e dos teus desejos mas eu sinto que guardas para ti, fechada na mão, uma jóia qualquer do teu sentimento. Porquê se eu te amo e se somos um só?

E. Porque nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo, apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste jardim. Segredo-o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que me não ouça não sei quem que me não pode ouvir.

A. Sou a tua Alma e a mim-próprio não me contas tudo! Passou ontem uma brisa leve pelo jardim. Trouxe perfumes de outros jardins […]

1914?

 

DIÁLOGO EN LA SOMBRA

A. Quisiera saber cómo estás hecho por dentro… Cómo es tu voluntad por dentro, qué cosas hay en esa parte de tu sentir que tú no mides que sientes.

E. Tan femenina en eso… ¡Y eres de la materia de las cosas irreales!

A. Cuando levantas un brazo yo querría saber por qué cosas del más allá tú levantas ese brazo… ¿Qué hay detrás de que tú quieras levantarlo y detrás de que tú sepas por qué quieres levantarlo? Estoy contigo desde hace tanto y no sé quién eres… Me fijo a veces en los pequeños gestos que haces y veo qué poco sé de ti…

E. Yo mismo no sé quién soy… Mis gestos son entes extraños cuando me fijo en ellos, y sombras inciertas cuando no me fijo. Son una perpetua revelación para mí mismo. Soy tan exterior para poder conocerme como el mundo externo… Entre que yo quiera levantar un brazo y que él se levante hay un intervalo divino… Atravieso, entre el pensamiento y el habla, un abismo sin fondo humano.

A. Yo soy simple como una piedra en el camino o una rosa en un rosal.

E. Eres simple porque no te reflejas en ti. Una piedra en el camino es (atónita) un misterio igual a Dios… Una rosa en un rosal es tan comprensible como la Vida…

A. Te miro y te amo y nunca te tengo. Florecieron (…) las rosas de mi jardín… Te acompaño y te pierdo cada vez que te miro.

E. Yo mismo no me acompaño… ¿cómo podrías acompañarme? Veo caminar mis pies como quien ve que un cortejo humano pasa en la distancia y en la noche… Me fijo en mi sombra como en un rostro desconocido que mira desde fuera por la ventana de mi casa… No comprendo nada… No comprendo nada.

A. Pero hay cosas que tú comprendes y que nunca me confiesas. Me hablas de tus amores y de tus deseos, pero siento que guardas para ti, en la mano cerrada, una joya cualquiera de tu sentimiento. ¿Por qué si yo te amo y si somos uno solo?

E. Porque nunca somos uno solo. Lo que no te digo, a pesar de vivir juntos en este palacio y de pensar juntos en este jardín, me lo murmuro a mí cuando estoy más solo y no levanto la voz, para que no me oiga no sé quién que no puede oírme.

A. ¡Soy tu Alma y a mí misma no me lo cuentas todo! Ayer pasó una brisa leve por el jardín. Traía perfumes de otros jardines […]

DIÁLOGO NO JARDIM DO PALÁCIO

A. O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos. Nós somos portanto a mesma cousa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos — e o que interveio entre nossos pais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te… Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim… Para mim existo apenas de um lado… Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B. Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A. Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São — corpo e alma — qualquer cousa que eu não possuo. (Pausa) Ah! e quando nos espelhos que me reflectem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado — encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo [própria]. Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra cousa. Estranho-me por fora… Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo? (…) Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B. Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar…

A. Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Que cheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face — pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B. Mesmo o tocar nas cousas — que estranho. Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já — parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(Uma pausa)

A. Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só… Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas… Não, não é isto que eu te quero dizer… Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B. Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si-própria.

A. Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B. Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado… Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas… Assim… Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa… e pensa… Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem… Assim, amor… Não movas nem o corpo nem a alma.

(Uma pausa)

B. O que sentiste?

A. Primeiro nada… Foi um espanto de ti e de mim… Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais… Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror — ah, já não poder senti-lo! — é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como (…)

B. (numa voz muito apagada) Depois? Depois?

A. Depois desci… Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho… É como se se abrisse no escuro um vácuo. O súbito pavor de uma Porta… Assim no meu pensamento uno, vácuo abstracto, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstracto e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu… E eu desci, ao contrário do que se desce — ao contrário por dentro do ao contrário…

(Pausa)

B. Continua, continua…

A. Desci mais, sempre mais… e sempre nessa nova direcção. Mas… (ajuda-me a poder dizer isto!) (…)

A. Oh, que horror! que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto? (…) Sinto-o como se o visse — como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe (…)

B. Não quero, não quero… Tu não sabes o que senti!

A. Não ouso querer não o ouvir… Mas tenho medo…

2.ª O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor (…) Cada uma de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1.ª Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2.ª Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não desiludir-se é acostumar–se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1.ª Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

2.ª O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão… (…) Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A. Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B. Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar. Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A. Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B. Não, é porque sei quanto tu me não podes amar… Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna — o Homem e a Mulher… (…)

A. Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes… Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?…

B. Não podemos deixar de querer compreender (…) Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma… Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A. Agora podemos sonhar… Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B. Não… Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos… Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã… Olha, tolda-se o céu… Levanta-se o vento. Vai chover…

A. Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado… Tu…

B. Nada devia ser comigo é… Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A. Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivésses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor… Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B. Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos leva. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer — é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo (…)

A. Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares (…) Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

(Fica parada a dizer-lhe de vez em quando adeus com a mão, num pranto apagado e tímido).

1913

DIÁLOGO EN EL JARDÍN DEL PALACIO

A. Nuestro padre y nuestra madre fueron los mismos. Nosotros somos, por tanto, la misma cosa; ¿somos uno solo, aunque parezcamos dos? O no lo somos – ¿y qué sucedió entre nuestros padres y nosotros para que pudiésemos ser diferentes? ¿Qué es lo que me separa de ti? Extiendo la mano y te toco y no sé qué es tocarte… Te miro y no distingo qué es verte. Para mí eres más real que yo misma porque te veo entero, porque puedo verte de espalda y a mí, no… Para mí solo existo de un lado… ¡Oh, si pudiera comprender lo que estoy diciendo!

B. ¿Qué ves de mí? Mi cuerpo. Mi alma no la ves.

A. Pero ni la mía la veo, y mi cuerpo apenas lo veo. No lo veo como un cuerpo se debe ver para que parezca real. Miro hacia abajo, hacia él, no miro hacia adelante como para ver el tuyo. ¡Si al menos yo sintiera que siento mi cuerpo! Pero no me siento ni dentro ni fuera. Ni soy ni existo mi cuerpo. Son – cuerpo y alma – algo que no poseo. (Pausa) ¡Ah! Y cuando en los espejos que me reflejan me veo de espalda, andando, o me veo de lado – me lleno de terror de mi misterio. Me siento horrorosamente coexistir conmigo [misma]. Ando atada al sueño que soy. Cuando me veo de espalda en los espejos parece que tengo otro ser, que soy otra cosa. Me extraño por fuera… Qué horror que no podamos ver más que de un lado nuestro cuerpo a la vez. ¿Qué pasará en el lado que no estamos viendo cuando no estamos viéndolo? (…) ¿Te has dado cuenta ya de que no podemos ver más que dos lados del palacio al mismo tiempo? ¿Acaso Dios se estará posando siempre en el lado que no podemos mirar? ¡Si tú supieras cómo mi vida consiste en pensar en ello!

B. Ah, todo eso no me perturba tanto como mi voz, cuando suena en mí y pienso que no la creé, ni sé qué es ella, y la traigo conmigo como algo mío. Hablo y me doy cuenta de las palabras y del misterio de que ellas tengan significado. ¿Nunca te has escuchado? ¿Tú nunca te has escuchado? ¡Más que verme desde fuera, lo que tus espejos, a pesar de todo, consiguen, lo que quería es oírme desde fuera! Me tapo los oídos a veces, para oír mi voz dentro de mí, y oigo solo un susurro, como si estuviera más cerca de mí, y comenzara ya a conocer de quién es la voz que es mía. Y tengo un miedo que no me deja continuar…

A. ¡Ah, y los otros sentidos! ¿A quién te sabes tú en tu boca? ¿Qué hueles cuando no hueles nada? Y cuando tocas con una mano tu brazo o tu rostro – ¿has pensado ya que tu mano es la que toca tu rostro y no tu rostro el que toca tu mano?, mantén tu rostro bajo tu mano, y será siempre tu mano la que toca, y tu rostro es el que es tocado.

B. Incluso tocando las cosas – qué extraño. Si tuviera esa piedra en la mano, de ahí a poco no la siento ya – parece que pertenece a mi cuerpo. ¡Qué misterio es todo! Estamos dormidos para nosotros mismos. ¿Cuánta alma durará nuestro sueño?

(Pausa)

A. A veces, cuando pienso muy adentro, me sabe a que cuerpo y alma son una sola cosa… Me parece entonces que realmente vemos las cosas por los dos lados, que el alma de las cosas es lo que nos parece que no vemos de ellas… No, no es esto lo que te quiero decir… ¡Mira, no sé pensar en mi pensamiento!

B. Sí, comprendo lo que no has dicho. Pero el cuerpo no existe, tal vez: es el alma vista por ella misma.

A. No. no es así. Pero yo no sé cómo es.

B. Vamos a jugar, si quieres, a un juego nuevo. Juguemos a que somos uno solo. Tal vez Dios nos encuentre alguna gracia y nos perdone por habernos creado… Siéntate aquí, frente a mí y cerca. Junta tus rodillas a mis rodillas y toma mis manos entre las tuyas… Así… Ahora cierra los ojos. Ciérralos bien y piensa… y piensa… ¿En qué deberías pensar? No, no pienses en nada. Trata de no pensar en nada, de no querer sentir, de no saber que oyes o que puedes ver, o que puedes sentir las manos, si quieres pensar que ellas existen… Así, amor… No muevas ni el cuerpo ni el alma.

(Pausa)

B. ¿Qué has sentido?

A. Primero, nada… Fue un espanto de ti y de mí… Después de olvidarme de todo, mi cuerpo cesó. Quise abrir los ojos, pero tuve mucho miedo de abrirlos. Después cesé aún más… Fui poco a poco careciendo de alma. Encontré que era un gran abismo en forma de pozo, que sentía vagamente que el universo con sus cuerpos y sus almas estaban muy lejos. Ese pozo no tenía paredes, pero yo sentía que era un pozo, lo sentía estrecho, circular y profundo. Comencé entonces a sentir un gran horror – ¡ah, no poder sentirlo ya! – es que ese pozo era un pozo hacia dentro de él mismo, hacia dentro no de mi ser, ni de que yo fuera pozo, sino hacia dentro de él mismo, no sé cómo (…)

B. (Con una voz muy apagada) ¿Y después? ¿Y después?

A. Después bajé… Encontré en el pensamiento una dimensión desconocida por la que hice mi camino… Es como si se abriera en la oscuridad un vacío. El súbito pavor de una Puerta… Así en mi pensamiento uno, vacío, abstracto, una puerta se abrió, un Pozo por el que fui bajando. ¿Lo comprendes bien?, ¿comprendes? Fue en el pensamiento todo abstracto y sin diferencias ni fines, ni ideas, ni ser, en el que un Pozo se abrió… Y yo bajé, al contrario de lo que baja – al contrario por dentro de lo contrario…

(Pausa)

B. Sigue, sigue…

A. Bajé más, cada vez más… y siempre en esa nueva dirección. Pero… (¡ayúdame a poder decir esto!) (…)

A. ¡Oh, qué horror!, ¡qué horror lo que estoy sintiendo! ¡Me arrancan el alma como los ojos para no ver! ¿Sabes lo que siento? (…) Lo siento como si lo viera – como si lo viera ¡y eso no se puede ni pensar! ¡Ah, agárrame, tenme en tus brazos! ¡Apriétame! ¡Apriétame tanto que tu brazo me lastime! (…)

B. No quiero, no quiero… ¡Tú no sabes lo que he sentido!

A. No me atrevo a querer no oír… Pero tengo miedo…

2ª. Nuestro amor se parece al sueño porque no es más que la superficie del amor: Mi amor es imposible como realidad, posible solo como amor (…) Cada una de nosotras, en nuestro amor, no se ama sino a sí misma, en el amor; sueña en voz alta y es oída. Sueña con el cuerpo, con los besos, con los brazos.

1ª. Le diré que no lo amo. ¿Qué mejor amante que tú? Eres mujer como yo, y al amarte es a mí a quien puedo amar.

2ª. Realizar el amor es desilusionarse. Tanto como no desilusionarse es acostumbrarse. Acostumbrarse es morir. Por mí solo he amado en mi vida, y amo, a un extranjero a quien no he visto sino de perfil, un atardecer, cuando estábamos en medio de una multitud.

1ª. Pero ¿él sabe que lo amas? Si no sabe que lo amas, ¿de qué sirve que lo ames?

2ª. Mi amor es mío y está en mí y no en él. ¿Qué tiene que ver él conmigo si no lo amo? Si lo conociera, nuestra primera palabra sería nuestra primera desilusión (…) ¿Valdrá la pena amar lo que podemos tener? Amar es querer y no tener. Amar es no tener. Lo que tenemos, lo tenemos, no lo amamos.

A. ¡Si, a pesar de todo, nos amásemos!

B. No, ahora ya no puede ser. Hemos descubierto en un momento lo que los felices no descubren a lo largo de su vida, y lo que los más infelices tardan mucho en encontrar. Hemos descubierto que somos dos y que por eso no podemos amarnos. Hemos descubierto que no se puede amar, sino solo suponer que amamos.

A. ¡Ah, mas yo te amo tanto, tanto! Si tú dices eso es porque no imaginas cuánto te amo.

B. No, es porque sé cuánto no puedes amarme… Escúchame. Nuestro error fue pensar en el amor. Deberíamos haber pensado solo el uno en el otro. Así, nos descubrimos, nos desnudamos de la ilusión para vernos como éramos y vimos que éramos solo como la ilusión nos había hecho. En el fondo, no somos nada sino dos. En el fondo, somos una epopeya eterna – el Hombre y la Mujer (…)

A. Oh, amor mío, no pensemos más, no pensemos más. Amemos sin pensar. ¡Maldito sea el pensamiento! Si no pensáramos, seríamos siempre felices… ¿Qué tiene que ver quien ama con saber que ama, con pensar el amor, con lo que es el amor?…

B. No podemos dejar de querer comprender (…) ¡Cuanto más pienso en todo, más se me resuelve todo en oposiciones, en divisiones, en conflictos! ¡Has matado del todo mi felicidad! Ahora, aunque yo quisiera soñar, no podría hacerlo. El mundo es absurdo como un cuarto sin puerta alguna… ¡Qué alegría si no pensáramos, y qué horror haberlo pensado!

A. Ahora podemos soñar… Ven. Y no pienses más, no mires más hacia el amor.

B. No… Ahora es imposible. Podemos no pensar, pero no olvidar que pensamos… Seamos fuertes y separémonos ahora para siempre. Ojalá podamos olvidarnos y olvidar que soñamos el amor y que vimos que era una estatua vana… Mira, el cielo se ha cubierto… Se levanta el viento. Va a llover…

A. Ya no me atrevo a decirte que te amo, pero te he amado siempre. Tú no debías haberme amado… Tú….

B. Nada debía ser conmigo… Hemos sido infelices, nada más. La curva de este camino ha sido tal, que desde ella hemos visto el amor y ya no hemos podido amar.

A. Tú no me has amado nunca. Si me hubieras amado, no podrías decir eso. Si me hubieras amado, no pensarías en el amor, pensarías en mí. Sí, ahora todo ha terminado, pero porque entre nosotros nunca ha habido más que mi amor. Me has amado tal vez porque has pensado que yo te amaba o que debía amarte. No sé por qué me has amado, pero no ha sido por tenerme amor… ¿Por qué me miras así, tan diferente y absorto?

B. Porque me doy cuenta ahora de lo poco que sabemos de lo que somos, de lo que pensamos, de lo que nos lleva. Ahora he comprendido lo completo y absurdo que es todo esto. No podemos comprendernos. Entre alma y alma hay un abismo enorme. Lo que hemos descubierto al final ha sido eso: yo lo veo y tú no quieres verlo. Pero yo he descubierto más, al darme cuenta de que no sé lo que debo hacer – es que entre nosotros y yo se abre también un abismo. Andamos como sonámbulos en una tierra de abismo (…)

A. Adiós, sé feliz y olvídame. No tardes, que llueve mucho. En la curva del camino hay un árbol grande en el que podrás abrigarte (…) Vete deprisa, vete deprisa. Está lloviendo más.

(Se queda parada diciéndole adiós con la mano de vez en cuando, en un llanto apagado y tímido.)

A MORTE DO PRÍNCIPE

[PRÍNCIPE].  Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina. Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade. E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida? Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada. Por que não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Por que não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber, que não concebemos — um mistério de outro mundo inteiramente? Por que não seremos nós — homens, deuses, e mundo — sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E por que não será esse alguém que sonha ou pensa alguém que nem sonha nem pensa, súbdito ele mesmo do abismo e da ficção? Por que não será tudo outra-cousa, e cousa nenhuma, e o que não é a única cousa que existe? Em que parte estou que vejo isto como cousa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e a elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir? Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas. . . Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra cousa que estou a ver se vejo. Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?

P[RÍNCIPE]. Senta-te ali, aos pés da cama aonde eu quase que te não veja, e fala-me de cousas impossíveis… Vou morrer.

X. Não, meu Senhor…

P[RÍNCIPE]. Sim, vou… Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz… Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as cousas que se cansam de eu as ver… Começo a morrer nas cousas… O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito… Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer (sic) noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.

X . Isso é belo de mais para que possais estar perto da morte…

P[RÍNCIPE]. É belo demais para que possa lembrar à vida… A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira… As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem–me extraordinariamente nítidas, evidentes de mais… A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda… Afundo-me pouco a pouco…  Não te entristeças… Eu era real de mais para poder reinar algum dia… O único trono que mereço é a morte… Não dizes nada?

X . Senhor, não morrereis…

P[RÍNCIPE]. Sinto um ruído qualquer… Ah, como parece ser o arranjarem–me as vestes para a minha coroação no meu melhor Reino!… Sinto tinir espadas e isso lembra-me o ver cair neve… Lembras-te de antigamente?… Eu era muito pequeno, e quando o silêncio da neve descia sobre a terra, íamo-nos sentar para a lareira do castelo a falar nas cousas que nunca aconteceriam… Quantas princesas amei no futuro que nunca tive!… Lembras-te — não te lembras? — de como eu ficava cansado pelos combates em que nunca havia de entrar…

X. Para vós, Senhor, só havia na vida amanhã…

P[RÍNCIPE]. Talvez porque o meu corpo sabia que eu teria que morrer cedo… Mas não era amanhã nunca para mim, era sempre depois de amanhã… Eu sonhava sempre com um futuro que estava sempre um pouco ao lado do futuro que teria…

X. Às vezes eu contava histórias de fadas…

P[RÍNCIPE]. Sim… Eram todas diferentes… Na minha terra toda a gente é igual… Cansa tanto olhar para gente!… Nas festas do palácio havia sempre grupos que segredavam do meu silêncio… Eu via-lho nos olhos… Eu ficava a um canto, sempre não vendo aquilo para que olhava… Via sempre coisas diferentes daqueles entre quem eu estava… Nas salas do palácio, os meus olhos estavam nos bosques e a minha ânsia de estender os braços com a frescura das ervas e a maciez das pétalas e a paisagem das fontes… (…) Eu nunca fui feliz… Quando, nas ameias do meu novo castelo, eu olhar debruçado a confusão pequenina do mundo, eu serei feliz completamente… Talvez nem mesmo assim seja feliz… Mas [sei d’alma] que todo o meu encanto seria estar aonde não estou para de lá poder desejar onde estar…

X. Não serão todos assim?

P[RÍNCIPE] — Quem são todos? Para mim todos são só um… Eu nunca conheci ninguém. Distinguia as pessoas como quem distingue pedras… Nunca me deram a impressão de serem reais, especialmente quando falavam… Diziam todas as mesmas cousas, todas tinham amores e ódios, alegrias e dores, ânsias e cansaços… Se alguma me falava de qualquer cousa, eu, se fechava os olhos, tinha sempre diante de mim o Homem. Não, há em toda a gente uma só pessoa que não existe… Que vago… Que vago…

X. Vago, o quê, meu senhor?

P[RÍNCIPE]. Tudo… O horizonte está muito longe, muito longe… Ainda assim… não sei… não está… Sinto-o muito mais longe, mas não o vejo muito mais longe… Não sei bem o que vejo ou o que sinto… Talvez que as minhas sensações é que me sintam a mim… Parece-me que as cousas é que me sentem e que eu não existo senão porque as cousas me vêem e me sentem… Era bom se assim fosse… Não sei por que seria bom… Talvez por ser outra cousa… Como os reposteiros são estranhos…

X — Estranhos? estranhos, meu senhor?

P[RÍNCIPE]. Demasiadamente ali… Tenho vontade de ter medo de os estar vendo assim… Que estranho, que estranho tudo!… A janela é uma cousa muito outra! Parece saber que vêem através dela… Parece ver também… Parece que ela é que vê as cousas que nós vemos por ela… E a almofada, a almofada?

X. Que almofada, senhor? Essa…? Não a podeis ver…

P[RÍNCIPE]. Esta, esta… Não sei se a vejo… É enorme… Tem toda a extensão da vida!…. Mergulho nela como num mar de [sombras juntas] que ainda na minha carne saibam a sonhos… As minhas mãos, ao tocar nas roupas do meu leito, sentem-lhes cousas que antes não lhes poderiam sentir, significações seguras, frescuras, renúncias tímidas de linho… Ah, mas que estranho! mas que estranho! Não sei bem onde estás… As cousas em torno a mim são de tamanhos que não deviam ter… O meu leito é imenso como o repouso de um mendigo… As minhas mãos têm um fulgor a incertas… Como que vejo por dentro os perfis e os contornos das cousas… Não te sei dizer o que sinto… Não te sei dizer o que sinto… Todas as cousas tomam aspectos atentos… Todas as coisas se tornam heráldicas de mistério… Já não há cores… Já não há cores… Ah! o que é isto que as cores são agora?… O que é isto… Não são elas… São sonhos de outras cousas… São aproximações de cousas que vão a chegar à terra do espaço… Devo ter muito medo… Devo ter muito medo…

X. Aquietai-vos, Senhor, aquietai-vos. Heis-de viver… Este fim de dia é tão belo que não pode morrer alguém nele… Vede como os restos do sol são roxos e cinzentos no ocidente! Deveis viver, para viver… Espera-vos o amor e a lida…

P[RÍNCIPE]. Nunca agi certo.

X. Senhor, não penseis nisso…

P[RÍNCIPE]. Tratai-me antes de Senhora… Sou uma princesa de quem se esqueceram quando buscaram rainha… Ah que horror, que horror!

X. Que tendes, Senhor? que tendes?

P[RÍNCIPE]. Oh como tudo está mais estranho ainda! Não há já formas — oh meu Deus, oh meu Deus — não há já formas… Transbordaram as cousas umas para dentro das outras… No ar há só restos de linhas… Tudo é um fumo de lugares… Poeira, poeira… tudo em poeira… (…) Tudo é cinza de tudo… Tudo é cinza de tudo… Há em mim labirintos de não poder ver… A janela? onde está a janela… É uma coisa que brilha extraordinariamente mas em parte nenhuma do espaço… Tudo é cinzas de um fumo… (…) Onde estás tu? onde estás tu?

X. Aqui, Senhor, aqui!…

P[RÍNCIPE]. Não sei se te não vejo… Não sei o que é que vejo… Já não há cousa nenhuma… (Numa voz lenta e calma) O que é isto tudo? Não sei de que lado está a vida… O espaço está ao contrário… Não me sinto eu no meu mundo… Que estranho! que estranho! Onde é que está dando horas por dentro?… (…) Ah, vejo, vejo… Vejo agora! Vejo agora!

X. Que vedes, Senhor, que vedes? Acalmai, acalmai! Que vedes?

P[RÍNCIPE]. Vejo, vejo… Vejo através das cousas… As cousas escondiam… As cousas não eram senão um véu… Ergue-se o pano, ergue-se o pano do teatro… Tenho medo, tenho medo… Ah vejo, vejo enfim… Vejo enfim tudo… Olhai… Olhai… Agora vejo… Vejo as cousas reais, vejo as cousas que existem… Vede que surgem… (…) Vejo através das cousas como através dos meus olhos… As cidades sonhadas é que eram… reais.. As cousas são apenas a visão trémula delas reflectidas nas águas do meu olhar… Só o que nunca se tornou real é que existe realmente… O que acontece é o que Deus deita fora… O que parece não é real, é as costas das mãos de Deus, a Sombra dos seus gestos… As princesas que eu sonhei é que existem… As da terra são apenas as bonecas com que as outras brincam, vestindo-as, corpo e alma, a seu modo…

P[RÍNCIPE]. No além, floresço em corpo e para fora numa roseira com rosas brancas, e para dentro e em alma num outro universo, meu — numa outra paisagem minha. O corpo da minha vida real é uma roseira branca no Além; a alma da minha vida real é um universo interior no Além, um universo de dentro com montes com o perfil da minha ânsia, prados da extensão dos meus desejos.

P[RÍNCIPE]. Oh que horror, que inesperado horror! Que complexo! Que complexo! Sou a mesma roseira, mas estou vendo para dentro de mim… Tenho um reino, reino externo que sou eu além, tenho um universo meu — uma terra, uns céus… Vede… vede quem eu sou! Sinto-me roseira no escuro, mas olhando para dentro de mim vejo paisagens… Que paisagens amontoadas… Que contornos vagos! Que mistério estranho! Cada cousa é um universo para dentro… cada cousa no além é um universo perfeito olhando do seu corpo para a sua alma… Oh! Oh! já me não vejo. Sinto-me roseira toda perfumada… o corpo da minha realidade no além é uma roseira, que sinto mas não vejo… Os meus olhos esvaíram-se para a alma… Floriram para dentro as melhores flores do meu ser do além!…

X. Senhor! Senhor! Senhor! Já nem sequer me amas, já nem sequer me amas!

P[RÍNCIPE]. Que paisagem é esta que é uma roseira branca nas noites do além! Que (…) montes! que linha estranha que têm estes montes! Que vales tão aluindo-se.

P[RÍNCIPE]. Qual foi aquela batalha em que eu ia na frente dos meus corcéis, de pluma branca ondeando ao vento.

X. Não houve essa batalha, senhor. Não entraste nunca em combate…

P[RÍNCIPE]. Então por que me recordo tão bem disso? Eu ia indo e, não sei como, via-me longe. Eu era belo como não pode ser. A batalha durou muito tempo em que não se via nada. Ah, então essa foi uma derrota, uma derrota… Pobre de mim, que até os meus exércitos na guerra não podem vencer nem regressar…

P[RÍNCIPE]. É tudo as paredes de um grande poço a que não vejo o fundo… Que fundo, oh que fundo! De que lado é que é o negro? Aonde é por cima e por baixo? onde é que está o lugar onde eu estou? Ah, não sei onde está o espaço… Está tudo errado, tudo vazio de dentro para fora… Não tenho esquerda nem direita… Nem há lado nem posição… Ah, o que é isto tudo, o que é isto tudo? Tenho medo (…) Fecha-me na vida… Não me deixes sair da vida… Isto aqui é tão estranho!

P[RÍNCIPE]. O silêncio das cousas faz-me gestos que me apavoram. Onde estão as cousas… Já não há cousas… É tudo negro, tudo negro… Não, Não… tudo como se fosse negro. São gente… Ah, vede, vede… são figuras que passam… Não há cousas, há gente. Sobem dos abismos como exalações… Já não há cima nem baixo nas cousas. Tudo é já Diverso — mesmo o modo de se ser diverso.

X. Vede, senhor, vede, estais melhor… Já vedes cousas e antes víeis só sonhos.

P[RÍNCIPE]. Não, não… Passei atrás de Deus para o outro lado da ilusão… (…) Agora ouço-te: és uma figura num sonho… Amo-te com compaixão porque te julgas real… A tua alma e o teu corpo são uma só coisa, mal sabes tu o que eles te encobrem…

X. Acalmai-vos, senhor… Acostai-vos no leito… Tudo isso é sonho… Amanhã estareis melhor.

P[RÍNCIPE]. (numa voz calma e lenta) Ouço um ruído de fonte,… Que grande noite! Que grande paz cabe no haver esta noite… É outra espécie de noite… É a própria paz… Mas que lugar tão estranho… Todo fresco de tanto abismo… Por onde é que eu vou andando?…

X. Não andais, senhor…

P[RÍNCIPE]. Ouvi um ruído qualquer… Que grande paisagem de abismos… (…) No fundo de um desses abismos deve estar (…) Que calma espera nos contornos invisíveis dos rochedos? Que sossego se abisma nas profundezas!… Já estou esquecido de novo… Para onde vamos nós? Não ouço caminhar… É como se estivesse a dormir enfim… Cada passo é sereno (…), cada passo é calmo como ter já chegado… Como estou calmo. Vai raiar a aurora…

X. Anoitece, meu senhor, anoitece…

P[RÍNCIPE]. Vede, vede… Os exércitos que eu comandei… os cavaleiros do meu séquito… vencedores ao longe… vencedores ao longe… todos eles sou eu… Vede, vede… chegam ao castelo… Que grande castelo todo do poente! Chegam ao castelo… Ah, o que é isto? Como tudo se alarga! Como tudo se aviva… Ah! o castelo está em chamas, está em chamas! Assim é que ele devia estar… assim… assim… Ondeia em chamas, alastra-se no fumo… é maior ardendo, é mais antigo ardendo… é mais meu ardendo… Cresce tudo, cresce tudo… Que deslumbramento… Há fogo nas eiras… Há fogo nas eiras… Os pinheirais estão em chama… O céu é um mar imenso em marés furiosas de fogo… Tudo transborda lume… Queima-se em mim todo o universo… Arde todo ali fora.. no lume cresceu tudo para dentro… Tudo floresceu em chamas… Vejo de mais… Há cousas a mais no espaço… Há cousas de mais em cada cousa… Há muito em tudo… Está tudo errado, pra mais… Já vai mudar tudo… O fogo é já de outra cor… Ah… tudo é negro… tudo é negro… tudo é negro outra vez…  Há ruídos de grandes quedas; há choques de exércitos na noite… Ninguém sabe se vence… Tropéis de cavalos no longe… Onde está o mundo? Onde está o mundo? onde há cousas? onde há cousas? onde há cousas?

X. Meu senhor, meu senhor…

P[RÍNCIPE]. Já não sei nada… (…) Fala-me… Fala-me… Fala-me… De que lado da minha alma é que soa a tua voz?

s. d.

LA MUERTE DEL PRÍNCIPE

[PRÍNCIPE]. Todo este universo es un libro en el que cada uno de nosotros es una frase. Ninguno de nosotros, por sí mismo, le da más que un pequeño sentido, o una parte de sentido; solo en el conjunto de lo que se dice se percibe lo que cada uno quiere decir verdaderamente. Unos son frases que casi se yerguen del texto determinando el sentido de todo un capítulo, o de toda una intención, y a esos los llamamos genios; otros son simples palabras que contienen en sí mismas una frase, o adjetivos que definen con grandeza, destacadas aquí o allí, pero sin decir lo que importa en el conjunto, y esos son los hombres de talento; otros son frases de pregunta y respuesta, por las que se forma la vida del diálogo, y esos son los hombres de acción; otros son frases que alivian el diálogo, haciéndolo lento para que después se lo sienta más rápido, puntuaciones verbales del discurso, y esos son los hombres de inteligencia. La mayoría son frases hechas, casi iguales las unas a las otras, sin color ni relieve, que sirven, sin embargo, para unir las intenciones de las metáforas, para establecer la continuidad del discurso, para permitir que los relieves tengan relieve, que existen, aparentemente, solo para que los otros puedan existir. Por lo demás, ¿no estamos hechos nosotros -como la frase, de palabras comunes (y estas, de simples sílabas) – de una sustancia constante, diferentemente mezclada, de la humanidad vulgar? ¿No es nuestro amor el amor de todos y nuestro llanto, las lágrimas en sí mismas? Pero cada uno de nosotros ama y llora, y no otro: hay un objetivo interior que lo desvanece1 (disuelve) y determina. Esto que estoy diciéndote es sin duda un delirio, porque no sé por qué te lo digo; pero, ya que lo digo sin saber, es también verdad sin duda. Y las figuras del ajedrez y la baraja de juego o de adivinación, ¿seremos nosotros más que ellas donde la vida es vida? Cuando era niño me besaba en los espejos: era una señal anticipada de que nunca habría de amar. Abrigaba en mí, en una adivinación negativa, la ternura que nunca me sería dada. ¿Por qué no será todo una verdad completamente diferente, sin dioses, ni hombres, ni razones? ¿Por qué no será todo algo que no podemos siquiera concebir, que no concebimos – un misterio por completo de otro mundo? ¿Por qué no seremos nosotros – hombres, dioses y mundo – sueños que alguien sueña, pensamientos que alguien piensa, colocados siempre fuera de lo que existe? ¿Y por qué no será ese alguien que sueña o piensa en alguien que ni sueña ni piensa un súbdito él mismo del abismo y de la ficción? ¿Por qué no será todo otra cosa y cosa alguna y aquello que no es lo único que existe? ¿En qué parte estoy que veo esto como algo que puede ser? ¿En qué puente paso por debajo de mí, que estoy tan alto, y están las luces de todas las ciudades del mundo y de otro mundo, y las nubes de las verdades deshechas que planean encima y las buscan a todas ellas, como si buscaran lo que se puede ceñir? Tengo fiebre sin sueño, y estoy viendo sin saber lo que veo. Hay grandes llanuras a todo el alrededor, y ríos a lo lejos, y montañas… Pero al mismo tiempo no hay nada de esto, y estoy con el principio de los dioses y con un gran horror de partir o quedarme, y de dónde estar y de qué ser. Y también este cuarto donde te oigo mirarme es una cosa que conozco y casi veo; y todas estas cosas están juntas, y están separadas, y ninguna de ellas es la otra que estoy viendo si veo. ¿Para qué me dieron un reino si no tendré mejor reino que esta hora en la que estoy entre lo que no fui y lo que no seré?

P[RÍNCIPE]. Siéntate ahí, a los pies de la cama desde donde casi no te vea, y háblame de cosas imposibles… Voy a morir.

X. No, mi Señor…

P[RÍNCIPE]. Sí, voy a morir… Ya todo comienza a tener otro aspecto y a hablarles a mis ojos con otra voz… Parece que no soy yo el que está cansado de existir, sino que las cosas se cansan de que yo las vea… Comienzo a morirme en las cosas… Lo que se apaga en mí comienza a apagarse en el cielo, en los árboles, en el cuarto, en las cortinas de este lecho… Después, poco a poco, se irán apagando por el interior de mi cuerpo hasta que se haga de noche junto a las ventanas de mi alma.

X. Eso es demasiado hermoso para que pueda estar cerca de la muerte…

P[RÍNCIPE]. Es demasiado hermoso para que pueda recordar la vida… La curva de los montes, muy a lo lejos, se vuelve, no más indecisa, sino más indecisa de otro modo… Los árboles se atenúan en sombras, pero las hojas me parecen extraordinariamente nítidas, demasiado evidentes… La seda de las cortinas de este lecho es otra especie de seda… Me hundo poco a poco… No te entristezcas… Yo era demasiado real para poder reinar un día… El único trono que merezco es la muerte… ¿No dices nada?

X. Señor, no morirá…

P[RÍNCIPE]. Siento un ruido… ¡Ah, parece como si me arreglaran los vestidos para mi coronación en mi mejor Reino!… Siento que vibran las espadas, y eso me recuerda la caída de la nieve… ¿Te acuerdas del pasado?… Yo era muy pequeño, y cuando el silencio de la nieve descendía sobre la tierra, íbamos a sentarnos junto a la chimenea del castillo a hablar de las cosas que nunca pasarían… ¡Cuántas princesas he amado en el futuro que no he tenido nunca!… Te acuerdas – ¿no te acuerdas? – de lo cansado que terminaba con los combates en los que nunca habría de entrar…

X. Para usted, Señor, solo había vida en la vida de mañana…

P[RÍNCIPE]. Tal vez porque mi cuerpo sabía que yo tendría que morir pronto… Pero nunca era mañana para mí, siempre era pasado mañana… Siempre soñaba con un futuro que estaba siempre un poco al lado del futuro que tendría…

X. A veces yo contaba cuentos de hadas…

P[RÍNCIPE]. Sí… Eran todos diferentes… En mi tierra toda la gente es igual… ¡Cansa tanto mirar a la gente!… En las fiestas del palacio había siempre grupos que murmuraban de mi silencio… Lo veía en sus ojos… Me quedaba a un lado, siempre sin ver lo que miraba… Veía siempre cosas diferentes a aquellas entre las que estaba… En las salas del palacio, mis ojos estaban en los bosques, y mi ansia de extender los brazos con el frescor de las hierbas y la suavidad de los pétalos y el paisaje de las fuentes (…) Nunca he sido feliz… Cuando, en las almenas de mi nuevo castillo, mire inclinado la confusión pequeñita del mundo, seré completamente feliz… Tal vez ni así sea feliz… Pero [sé de corazón] que todo mi encanto sería estar donde no estoy para poder desear donde estar…

X. ¿No serán todos así?

P[RÍNCIPE]. ¿Quiénes son todos? Para mí todos son solo uno… Nunca conocí a nadie. Distinguía a las personas como quien distingue piedras… Nunca me dieron la impresión de que fueran reales, especialmente cuando hablaban… Todas decían las mismas cosas, todas tenían amores y odios, alegrías y dolores, ansias y cansancios… Si alguna me hablaba de algo, yo, si cerraba los ojos, tenía siempre ante mí al Hombre. No, hay en toda la gente una sola persona que no existe… Qué indefinido… Qué indefinido…

X. ¿Indefinido, qué, mi señor?

P[RÍNCIPE]. Todo… El horizonte está muy lejos, muy lejos… Aun así… no sé… no está… Lo siento mucho más lejos, pero no lo veo mucho más lejos… No sé bien lo que veo o lo que siento… Tal vez mis sensaciones sean las que me sientan a mí… Me parece que las cosas son las que me sienten y que yo no existo sino porque las cosas me ven y me sienten… Estaría bien que fuera así… No sé por qué estaría bien… Tal vez por ser otra cosa… Qué extrañas son las cortinas…

X. ¿Extrañas?, ¿extrañas, mi señor?

P[RÍNCIPE]. Demasiadamente allí… Tengo ganas de tener miedo de estar viéndolas así… ¡Qué extraño, qué extraño es todo!… ¡La ventana es algo muy diferente! Parece saber que se ve a través de ella… Parece que ve también… Parece que es ella la que ve las cosas que nosotros vemos a través de ella… ¿Y la almohada, la almohada?

X. ¿Qué almohada, señor? ¿Esa…? No puede verla…

P[RÍNCIPE]. Esta, esta… No sé si la veo… Es enorme… ¡Tiene toda la extensión de la vida!… Me sumerjo en ella como en un mar de [sombras juntas] que incluso en mi carne saben a sueños… Mis manos, al tocar la lencería de mi lecho, sienten cosas que antes no podrían sentir, significados seguros, frescores, renuncias tímidas de lino… ¡Ah, pero qué extraño!, ¡qué extraño! No sé bien dónde estás… Las cosas a mi alrededor tienen tamaños que no debían tener… Mi lecho es inmenso como el reposo de un mendigo… Mis manos tienen el brillo de incertidumbres… Como si viera por dentro los perfiles y los contornos de las cosas… No sé decirte lo que siento… No sé decirte lo que siento… Todas las cosas toman aspectos atentos… Todas las cosas se vuelven blasones de misterio… Ya no hay colores… Ya no hay colores… ¡Ah!, ¿qué son los colores ahora?… ¿qué?… No son ellos… Son sueños de otras cosas… Son aproximaciones de cosas que van a llegar a la tierra desde el espacio… Tengo que tener mucho miedo… Tengo que tener mucho miedo…

X. Cálmese, Señor, cálmese. Ha de vivir… Este final del día es tan hermoso, que nadie puede morir en él… ¡Mira qué moradas y cenicientas están las ruinas del sol que se pone! Debe vivir, para vivir… Le espera el amor y la lucha…

P[RÍNCIPE]. Nunca actué con certeza.

X. Señor, no piense en ello…

P[RÍNCIPE]. Trátame mejor como Señora… Soy una princesa de quien se han olvidado cuando buscaron a una reina… ¡Ah, qué horror, qué horror!

X. ¿Qué tiene, Señor?, ¿qué tiene?

P[RÍNCIPE]. ¡Oh, todo está aún más extraño! Ya no hay formas – oh Dios mío, oh Dios mío – ya no hay formas… Las cosas se derramaron las unas en las otras… En el aire solo hay restos de líneas… Todo es humo de lugares… Polvo, polvo… todo en polvo (…) Todo es ceniza de todo… Todo es ceniza de todo… Hay en mí laberintos para no poder ver… ¿La ventana?, ¿dónde está la ventana?… Es algo que brilla extraordinariamente, pero en ninguna parte del espacio… Todo es cenizas de humo (…) ¿Dónde estás?, ¿dónde estás?

X. Aquí, Señor, aquí…

P[RÍNCIPE]. No sé si no te veo… No sé qué es lo que veo… Ya no hay nada… (Con voz lenta y tranquila) ¿Qué es todo esto? No sé de qué lado está la vida… El espacio está al contrario… No me siento en mi mundo… ¡Qué extraño!, ¡qué extraño! ¿En el interior de qué parte están dando las horas? (…) Ah, veo, veo… ¡Ahora veo! ¡Ahora veo!

X. ¿Qué ve, Señor?, ¿qué ve? ¡Cálmese, cálmese! ¿Qué ve?

P[RÍNCIPE]. Veo, veo… Veo a través de las cosas… Las cosas escondían… Las cosas solo eran un velo… Se levanta el telón, se levanta el telón del teatro… Tengo miedo, tengo miedo… Ah veo, por fin veo… Lo veo, por fin, todo… Mira, mira… Ahora veo… Veo las cosas reales, veo las cosas que existen… Mira cómo surgen (…) Veo a través de las cosas como a través de mis ojos… Las ciudades soñadas son las que eran… reales… Las cosas solo son la visión trémula de las reflejadas en las aguas de mi mirada… Lo que pasa es lo que Dios arroja fuera… Lo que parece no es real, son el dorso de las manos de Dios, la Sombra de sus gestos… Las princesas con las que he soñado son las que existen… Las de la tierra solo son las muñecas con las que las otras juegan, vistiéndolas, de cuerpo y alma, a su modo…

P[RÍNCIPE]. Más allá, florezco, en el cuerpo y hacia fuera, en un rosal de rosas blancas, y para dentro y en el alma, en otro universo, mío – en otro paisaje mío. El cuerpo de mi vida real es un rosal blanco en el más allá; el alma de mi vida real es un universo interior en el más allá, un universo interior con montes que tienen el perfil de mi ansia, prados que tienen la extensión de mis deseos.

P[RÍNCIPE]. ¡Oh qué horror, qué inesperado horror! ¡Qué complejo! ¡Qué complejo! Soy el mismo rosal, pero estoy viendo dentro de mí… Tengo un reino, un reino externo que soy yo más allá, tengo un universo mío – una tierra, unos cielos… Mira… ¡Mira quién soy! Me siento un rosal en la oscuridad, pero mirando dentro de mí veo paisajes… Paisajes amontonados… ¡Qué vagos contornos! ¡Qué extraño misterio! Cada cosa es un universo dentro… cada cosa en el más allá es un universo perfecto que mira desde su cuerpo hacia su alma… ¡Oh! ¡Oh!, ya no me veo. Me siento un rosal todo perfumado… el cuerpo de mi realidad más allá es un rosal, que siento, pero que no veo… Mis ojos se desmayaron en el alma… ¡Florecieron dentro las mejores flores de mi ser de más allá!…

X. ¡Señor! ¡Señor! ¡Señor! ¡Ya ni siquiera me amas, ya ni siquiera me amas!

P[RÍNCIPE]. ¡Qué paisaje es este que es un rosal blanco en las noches de más allá! ¡Qué (…) montes!, ¡qué extraña línea tienen estos montes! ¡Cómo se desmoronan los valles!

P[RÍNCIPE]. ¿En qué batalla iba yo al frente de mis corceles, con la pluma blanca ondeando al viento?

X. Esa batalla no ha existido, señor. No has entrado nunca en combate…

P[RÍNCIPE]. Entonces, ¿por qué me acuerdo tan bien de ella? Yo iba y no sé cómo, me veía a lo lejos. Era más hermoso de lo que se puede ser. La batalla duró mucho tiempo durante el cual no se veía nada. Ah, entonces, esa fue una derrota, una derrota… Pobre de mí, que hasta mis ejércitos en la guerra no pueden vencer ni regresar…

P[RÍNCIPE]. Todo es las paredes de un gran pozo cuyo fondo no veo… ¡Qué hondo, oh qué hondo! ¿De qué lado está lo negro? ¿Dónde?, ¿por encima o por debajo?, ¿dónde está el lugar en el que estoy? Ah, no sé dónde está el espacio… Todo está equivocado, todo vacío, desde dentro hasta fuera… No tengo izquierda ni derecha… Ni hay lado ni posición… Ah, ¿qué es todo esto?, ¿qué es todo esto? Tengo miedo (…) Enciérrame en la vida… No me dejes salir de la vida… ¡Esto es tan extraño!

P[RÍNCIPE]. El silencio de las cosas me hace gestos que me asustan. Dónde están las cosas… Ya no hay cosas… Está todo negro, todo negro… No, no… todo como si fuera negro. Son gentes… Ah, mira, mira… son figuras que pasan… No hay cosas, hay gentes. Suben de los abismos como exhalaciones… Ya no hay arriba ni abajo en las cosas. Ya todo es Diverso – incluso el modo de ser diverso.

X. Mire, señor, mire, está mejor… Ya ve cosas, y antes solo veía sueños.

P[RÍNCIPE]. No, no… He pasado, por detrás de Dios, hasta el otro lado de la ilusión (…) Ahora te oigo: eres una figura en un sueño… Te amo con compasión porque te crees real… Tu alma y tu cuerpo son una única cosa, apenas sabes lo que ellos te encubren…

X. Cálmese, señor… Reclínese en el lecho… Todo eso es un sueño… Mañana estará mejor.

P[RÍNCIPE]. (Con voz tranquila y lenta) Oigo un ruido de fuente… ¡Qué gran noche! ¡Qué gran paz cabe en el hecho de que haga esta noche!… Es otra especie de noche… Es la misma paz… Pero qué lugar tan extraño… Todo fresco de tanto abismo… ¿Por dónde estoy caminando?

X. No camina, señor…

P[RÍNCIPE]. He oído un ruido… Qué gran paisaje de abismos (…) En el fondo de uno de esos abismos debe de estar (…) ¿Qué calma espera en los contornos invisibles de los roquedos? ¡Qué sosiego se abisma en las profundidades!… Ya he olvidado de nuevo… ¿Hacia dónde vamos? No oigo caminar… Es como si estuviera durmiendo por fin… Cada paso es sereno (…), cada paso es tranquilo como si ya hubiera llegado… Qué tranquilo estoy. Va a rayar la aurora…

X. Anochece, mi señor, anochece…

P[RÍNCIPE]. Mira, mira… Los ejércitos que yo mandaba… los caballeros de mi séquito… vencedores a lo lejos… vencedores a lo lejos… todos ellos soy yo… Mira, mira… llegan al castillo… ¡Qué gran castillo todo a poniente! Llegan al castillo… Ah, ¿qué es esto? ¡Cómo se ensancha todo! ¡Cómo se aviva todo!… ¡Ah!, ¡el castillo está en llamas, está en llamas! Así es como debía de estar… así… así… Ondea en llamas, se extiende en el humo… es mayor al arder, es más antiguo al arder… es más mío al arder… Crece todo, crece todo… ¡Qué deslumbramiento!… Hay fuego en las eras… Hay fuego en las eras… Los pinares están en llamas… El cielo es un mar inmenso en mares furiosos de fuego… Todo derrama luz… Se quema en mí todo el universo… Arde todo ahí fuera… En la luz ha crecido todo hacia dentro… Todo ha florecido en llamas… Veo demasiado… Hay cosas de más en el espacio… Hay cosas de más en cada cosa… Hay mucho en todo… Todo está equivocado, además… Ya va a cambiar todo… El fuego ya es de otro color… Ah… todo es negro… todo es negro… todo es negro otra vez… Hay ruidos de grandes caídas; hay choques de ejércitos en la noche… Nadie sabe si vence… Tropeles de caballos a lo lejos… ¿Dónde está el mundo? ¿Dónde está el mundo? ¿Dónde hay cosas? ¿Dónde hay cosas?¿Dónde hay cosas?

X. Mi señor, mi señor…

P[RÍNCIPE]. Ya no sé nada (…) Háblame… Háblame… Háblame… ¿En qué lado de mi alma suena tu voz?

SALOMÉ

[SALOMÉ] – A minha beleza faz os homens sonâmbulos, e o som (encanto) da minha voz distrai-os de sonhar. As suas preferidas odeiam-me sem saber se existo, porque entre as palavras vagas dos seus discursos amorosos, a minha imagem embarga as frases e elas sentem-me passar, como um canto de sereia, nos esquecimentos da voz, e nos abrandamentos dos braços e das mãos, que cingem ou que apertam. Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura à imaginação, e não poderão ter esposa, nem noiva, nem até irmã a que acarinhem, porque se lembram de que eu sou a princesa que um dia lhes foi toda a vida.

Os meus passos vão leves sobre as relvas, como se fossem memórias. Nos gestos que faço com os braços há um sorriso da minha boca triste. Os meus olhos não conhecem uma promessa certa, e quando são baixos e só os cílios vivem, os corações anseiam com uma grande tortura.

Dizem que sou a maravilha, mas eu não sei quem sou. Habita em mim um fluido de desastres que cai sobre as épocas futuras como uma chuva que é nevoeiro.

Morreriam milhares só por beijar minhas mãos. Milhares deixariam seus lares só por ouvir a própria voz chamar-me a mim princesa. Pelo meu desprezo visível trocariam muitos todos os amores que lhes foram dados, e até aqueles que desejariam. Sou fatal como as noites e os outonos, e no meu coração há já uma saudade de todos quantos matarei.

Os escravos rastejam com os olhos quando mal me podem olhar. Passo entre as alas dos soldados e sinto-os que tremem como folhas ao vento. Levarão saudades desse momento como de uma grande maldição, e acordarão nas grandes noites de estio, quando o suor entra na alma, pávidos da memória sinistra que vive do meu perfil entrevisto, dos meus olhos desviados, do recorte das minhas sobrancelhas muito negras contra a pele morena muito branca da minha fronte coroada de sombras.

As escravas invejam-me com amor, e cada uma sonha, a sós com o leito sem outro peito, em como haveriam seus olhos de fazer amar os cães, e seus gestos de fazer relinchar os cavalos, nas grandes noites em que a virgindade se sente nas entranhas.

Os gatos roçam-se contra as minhas pernas e sentem-se tigres até ao sexo. As aves cantantes calam-se quando passo, e as rosas altas roçam pela minha face porque eu tenho o privilégio dos caminhos.

[SALOMÉ] – Trazei, disse, vossos sonhos para este terraço de onde se vê o mar. Quero sonhar convosco em voz alta, e que a minha voz teça com as vossas o casulo de uma história em que nos fechemos da vida. Para aqui são as terras do reino do que me é como pai, para ali o mar e as terras do outro rei: ambos têm gente a quem governam, em ambas amam os que amam e são forasteiros os que passam ( …)

Contai, sim, o que vos conto que vos contar-vos. Sonharmos, sonharemos o mesmo sonho. Se o sonharmos todas, ele será mais belo do que é, e terá uma vida longínqua e trémula como a candeia das imagens que vivem no fim do mundo.

Eu, filha de Herode, não tenho dia em que não queira a noite nem noite que não anseie pelo dia (…) A minha vida é uma planície a que se segue outra planície. Não raia sol que me traga a alegria do outro, nem lua que me lembre mais os sonhos que não sei sonhar.

[SALOMÉ] – Sinto-me menos imortal que as cousas que sonho. Quando o sol nasce ou morre, a minha sombra é infinita (…) Projecto-me quando sonho sobre todas as épocas. Quando sonho sinto que não morro. É quando acordo, e escuto com o meu sangue, que eu ouço passar a vida.

S[ALOMÉ] – Minha vida tem um cansaço de mais cousas do que a minha vida. Não sei mais que sonhar, mas hoje, que me pesa tanto o não saber mais que sonhar, e tenho sem querer a necessidade do sonho, quero que sonheis comigo. Quero que sonhemos juntas. Se uns vivem juntos, porque não sonharão juntos outros? Há alguma diferença entre o sonho e a vida?

A – Mas como, senhora, sonharemos juntas? Tenho sono, e gostaria de sonhar; mas não quero dormir, porque os sonhos, quando se dorme, são de outra alma, e cruzam-se com os que desejaríamos ter, como os peregrinos nas encruzilhadas.

S[ALOMÉ] – Eu farei para mim um sonho, e esse sonho será uma história. Irei contando alto essa história, e vós ouvireis e sonhá-la-eis comigo. Uma ou outra de vós, quando a história lhe for ensopando a alma, me irá dizendo o que vê na alma dessa história, e que eu me esquecesse de contar. Será como um canto em que cantemos juntas num sentido, e cada uma por sua vez na voz. Dizei-me que pode ser assim, para que eu possa sonhar a história que há-de ser.

A2 – Se a história for bela, senhora, será pena que fosse apenas sonho; se não for bela, será pena que se houvesse contado.

S[ALOMÉ] – Se a contarmos bem e for bela, e por isso a sonharmos bem, será mais que um sonho, nalgurn lugar, algum momento, ela terá de ser, porque as coisas que acontecem não são senão como são narradas depois. O que aconteceu ninguém o sabe, porque ninguém sabe o que está acontecendo; os olhos têm a venda de ver e os ouvidos estão tapados com o ouvir. Os livros grandes que meu Pai lê contam coisas maravilhosas do passado. Essas coisas são narradas, porém talvez nunca se dessem. Mas as coisas deram-se porque foram narradas. Que temos nós com o que foi? O que foi é morto e como se não fora nunca. O que é do que foi é verdadeiramente hoje foi antes. O mais é pensar de loucos ou de crianças, que querem a verdade ou a lua nas grandes noites de verão, como esta em que a alma é ampla e triste.

A – Assim seja, senhora, e sonhemos. Começai vós que quereis começar, e tendes a voz das fontes escondidas, e os gestos, quando acaso os abris, das palmeiras que mostram que há vento, quando não há vento que toque as pálpebras nem brisa que roce na face a distracção dos cabelos.

S[ALOMÉ] – (depois de uma breve pausa) Suponde que… Não, supor é perder… Não, não é assim que se sonha… Espera, que quero ver… (Outra pausa) Havia, no deserto para além do deserto, entre a parte dos desertos que é rochedos, e a solidão é mais dura do que nas areias e a alma mais triste que ao pé das palmeiras, um homem que queria um deus, porque nao havia deus dos homens que habitassem naqueles desertos nem naquela alma. Queria um deus com mais sede que a da água, e mais fome que a dos frutos que são como água e são doçura, e para os quais as crianças estendem o olhar e a mão. Esse homem chamava-se João, porque no meu sonho se chama João. É um nome de entre os hebreus, mas não há felizmente profeta ou rabino de entre eles que ainda usasse deles. Esse homem clamava-a porque a queria e não porque ela houvesse de ser. Mas ele clamava tanto que sem dúvida o ouviria esse deus que ele estava criando. E o deus viria em sua hora, porque para quem sonha não há hora, nem se desencontra a alma com o seu destino.

S[ALOMÉ] – Quer, com todo o meu sonho, que este sonho seja verdadeiro. Quero que fique verdade no futuro, como outros sonhos são verdades no passado. Quero que homens morram, que povos sofram, que multidões rujam ou tremam, porque eu tive este sonho. Quero que o profeta que imaginei crie um deus e uma nova maneira de deuses, e outras coisas, e outros sentimentos, e outra coisa que não seja a vida. Quero tanto sonho que ninguém o possa realizar. Quero ser a rainha do futuro que nunca haja, a irmã dos deuses que sejam amaldiçoados, a mãe virgem e estéril dos deuses que nunca serão.

S[ALOMÉ] – O que é esse grito na noite, lá em baixo?

A – Trouxeram ao tetrarca a cabeça de um bandido.

S[ALOMÉ] – Tragam-me a cabeça de um bandido. Tragam-ma numa salva de ouro.

S[ALOMÉ] – De quem é essa cabeça?

X – De um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não quero que seja de um bandido que matava nas aldeias. Quero que seja de um santo que criasse deuses.

X – Era de um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Aproxima-se de mim a salva (…). Vede como as pálpebras podem ser de um sonhador, e a boca pode ser de um pecador arrependido ou de um asceta que nunca pecou. As faces têm rugas — podem ser de vigília ou de ódio, mas isso importa pouco, porque estamos criando a história. Afasta um pouco mais a cabeça. Quero vê-la, mas não quero vê-la bem. Afasta mais ainda. Aí, onde está, a luz do luar dá-lhe como um malefício. Quantos luares mais lhe não darão no sonho que outros terão do meu! Leva-a mais para longe. Estou cansada. Sonhei demais. Que homem era esse?

X – Era um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não te disse que essa cabeça era a de um santo que fazia deuses? Porque me dizes que era de um bandido que matava nas aldeias? Chamai o capitão da guarda — o que é louro e triste.

(…) A princesa chama o capitão de guarda. 
Um murmúrio vago. O capitão aparece.

CAP – Chamaste-me, senhora?

S[ALOMÉ] – Chamei. Está ali um homem com uma salva.

CAP – Senhora, vejo.

S[ALOMÉ] – Na salva está a cabeça de um santo que criava deuses. Reparai no homem que tem a salva na mão.

CAP. Senhora, reparo.

S[ALOMÉ] – Esse homem desmentiu-me. Quero que mateis esse homem.

CAP – Senhora, que mate esse homem?

S[ALOMÉ] – Tendes a espada e a minha ordem. Que mais razão podeis querer?

(O capitão desembainha a espada e mata o servo. Este cai com a salva. A salva e a cabeça, separadas, fazem estrondo alto e baixo, no chão de pedra. Entra o Tetrarca.)

H[ERODES] – Que novo sonho é este, ou que novo capricho? Que malícia fez que se trouxesse aqui esta cabeça que pedi me fosse levada? Quem a desviou dos meus olhos para os teus?

S[ALOMÉ] – É a cabeça de um bandido que matava nas aldeias.

H[ERODES] – Não é. Esta é a cabeça de um santo que estava a criar deuses pelos desertos. Mandei-o matar e quis que me trouxessem a sua cabeça. Porque foi que a pediste?

S[ALOMÉ] – Porque foi que a pedi? Porque foi que a pedi? Não sei. Não sei. Que foi isso que disseste, senhor que me tira a alma toda do coração. Não digais que me disseste a verdade porque isso é demais para o meu sonho. Ah, que talvez o sonho não crie mas veja, e não faça senão o que adivinha. Aquela cabeça era de um santo que andava nos desertos?

H[ERODES] – Que vinho de luar te embebedou, que falas como os mortos entre os vivos? Aquela cabeça é de um santo que cantava nos desertos a memória dos deuses futuros.

S[ALOMÉ] – A cabeça? Deixem-me vê-la de perto. (Ajoelha ao pé dela) (Toma-a nas mãos) Faz medo e nojo, como os deuses. É a cabeça de um monstro porque é a de um morto. Tetrarca, quem era este homem?

H[ERODES] – Era um homem que anunciava nos desertos, cantando e gritando, a vinda do fim das coisas e de um deus que teria piedade. Gritava entre a rochas solitárias que os deuses antigos eram como os homens quando vivem, mas o deus novo seria como os homens quando morrem, a imagem da tristeza e da verdade, Não lhe vi ainda a cabeça. Erguei-ma na salva para que eu a veja.

(O capitão da guarda olha em redor faça. Abaixa-se, toma a salva, coloca nela a cabeça e ergue-a ante a vista do Tetrarca. O Tetrarca inclina a cabeça para a frente e fita a cabeça com insistência.)

H[ERODES] – É a cara de um homem que viveu entre os desertos e esperava novos deuses ao pé de rochedos. Parece que chorou muito: as faces têm sulcos como os que as águas fazem nas rochas. É terrível, mas por detrás das pálpebras cerradas sinto com a própria vista que os olhos são tristes… Quem matou aquele escravo?

CAP – Fui eu.

H[ERODES] – Porque o mataste?

CAP – Mandou a princesa que o matasse.

H[ERODES] – Porque foi que mandaste matar?

S[ALOMÉ] – Não sei. Não sei nada. Sucede qualquer coisa de tão terrível que não sei como falar. Mandei-o matar porque ele disse que aquela cabeça era de um santo que criava deuses nos desertos.

H[ERODES] – Mas era de um santo que criava deuses nos desertos.

S[ALOMÉ] – Não era: era de um bandido que matava nas aldeias. Deponde a salva no chão, retirai-vos. Tenho sono. Pai, tenho sono. (Para as aias) Retirai-vos vós também. Pai, quero dormir. Deixai a salva aí no chão, com a cabeça. Pai, ide-vos também daqui.

S[ALOMÉ] – Eu bem sabia. Eu bem sabia. Não se pode sonhar sem Deus saber. A minha mentira era verdade. Era certo que nos desertos havia um santo que chamava por um deus novo, um deus triste como as rochas e sozinho como as grandes planuras. Eu bem sabia que alguém haveria de querer um deus que conhece os sonhos e tem pena do que não têm nada.

Vou fazer como se estivesse num festim. Vou bailar à roda da tua cabeça até cair sem vida. Vou dançar no funeral das coisas que morreram com a tua vida. Vê, vou fazer um bailado ao luar, para dizer tudo.

s.d.

SALOMÉ

[SALOMÉ]. Mi belleza vuelve sonámbulos a los hombres, y el sonido (encanto) de mi voz los distrae de soñar. Sus preferidas me odian sin saber si existo, porque entre las palabras vagas de sus discursos amorosos, mi imagen embarga las frases y ellas me sienten pasar, como un canto de sirena, y en los olvidos de la voz, y en la languidez de los brazos y de las manos, que ciñen o que aprietan. Soy el perfume que, una vez soñado, irradia la imaginación, y no podrán tener esposa ni novia, ni incluso hermana a la que acariciar, porque se acuerdan de que yo soy la princesa que fui para ellos toda la vida.

Mis pasos van leves sobre el césped, como si fuesen recuerdos. En los gestos que hago con los brazos hay una sonrisa de mi boca triste. Mis ojos no conocen una promesa cierta, y cuando están bajos y solo las pestañas viven, los corazones ansían con una gran tortura.

Dicen que soy la maravilla, pero yo no sé quién soy. Habita en mí un flujo de desastres que cae sobre las épocas futuras como una lluvia que es niebla.

Morirían millares solo por besar mis manos. Millares dejarían sus hogares solo por oír su propia voz llamándome a mí princesa. Por mi desprecio visible cambiarían muchos todos los amores que les fueron dados, y hasta los que desearían. Soy fatal como las noches y los otoños, y en mi corazón hay ya una nostalgia de todos a los que mataré.

Los esclavos se humillan con los ojos cuando apenas pueden mirarme. Paso entre las filas de los soldados y siento que tiemblan como hojas al viento. Tendrán nostalgia de ese momento como de una gran maldición, y despertarán en las grandes noches de verano, cuando el sudor entra en el alma, pávidos  por el recuerdo siniestro que vive de mi perfil entrevisto, de mis ojos desviados, del recorte de mis cejas muy negras contra la piel morena muy blanca de mi frente coronada de sombras.

Las esclavas me envidian con amor, y cada una sueña, a solas en su lecho sin otro pecho, cómo tener ojos para hacer que amen los perros, y gestos que hagan relinchar a los caballos, en las grandes noches en que la virginidad se siente en las entrañas.

Los gatos se rozan contra mis piernas y se sienten tigres hasta en el sexo. Las aves que cantan se callan cuando paso, y las rosas altas rozan mi rostro porque tengo el privilegio de los caminos.

[SALOMÉ]. Traed, dije, vuestros sueños a esta terraza desde donde se ve el mar. Quiero soñar con vosotras en voz alta, y que mi voz teja con las vuestras el capullo de una historia en la que nos cerremos ante la vida. Aquí están las tierras del reino del que es como mi padre; allí, el mar y las tierras de otro rey: ambos tienen gentes a las que gobiernan, en ambas aman los que aman y son forasteros los que pasan (…)

Contad, sí, lo que os cuento que voy a contaros. Soñar, soñaremos el mismo sueño. Si lo soñamos todas, será más hermoso de lo que es, y tendrá una vida lejana y trémula como la vela de las imágenes que viven en el fin del mundo.

Yo, hija de Herodes, no tengo día en que no quiera la noche, ni noche en que no ansíe el día (…) Mi vida es una llanura a la que le sigue otra llanura. No raya sol que me traiga alegría del otro, ni luna que me recuerde ya los sueños que no sé soñar.

[SALOMÉ]. Me siento menos inmortal que las cosas que sueño. Cuando el sol nace o muere, mi sombra es infinita (…) Me proyecto cuando sueño sobre todas las épocas. Cuando sueño siento que no me muero. Y cuando despierto, y escucho con mi sangre, oigo que pasa la vida.

[SALOMÉ]. Mi vida tiene un cansancio de más cosas que mi vida. No sé más que soñar, pero hoy que me pesa tanto no saber más que soñar y tengo sin querer la necesidad del sueño, quiero que soñéis conmigo. Quiero que soñemos juntas. Si unos viven juntos, ¿por qué otros no soñarán juntos? ¿Hay alguna diferencia entre el sueño y la vida?

A. Pero ¿cómo vamos a soñar juntas, señora? Tengo sueño y me gustaría soñar; pero no quiero dormir, porque los sueños, cuando se duerme, son de otra alma, y se cruzan con los que desearíamos tener, como los peregrinos en las encrucijadas.

[SALOMÉ]. Haré para mí un sueño, y ese sueño será una historia. Iré contando en alto esa historia, y vosotras la oiréis y la soñaréis conmigo. Una u otra, cuando la historia le vaya bañando el alma, irá diciéndome lo que ve en el alma de esa historia, que yo me olvidaría de contar. Será como un canto en el que cantemos juntas en un sentido, y cada una a su vez en la voz. Decidme que puede ser así, para que yo pueda soñar la historia que ha de ser.

A2. Si la historia es hermosa, señora, será una pena que sea solo sueño; si no es hermosa, será una pena que se haya contado.

[SALOMÉ]. Si la contamos bien y es hermosa, y por eso la soñamos bien, será más que un sueño, en algún lugar, algún momento, ella ha de ser, porque las cosas que pasan no son sino como son narradas después. Lo que pasó nadie lo sabe, porque nadie sabe lo que está pasando; los ojos tienen la venda de la vista y los oídos están tapados con el oír. Los libros grandes que mi Padre lee cuentan cosas maravillosas del pasado. Esas cosas son narradas, aunque tal vez nunca se dieran. Pero las cosas se dieron porque fueron narradas. ¿Qué tenemos que ver con lo que ha sido? Lo que ha sido está muerto, y es como ni no hubiera existido nunca. Lo que es de lo que ha sido verdaderamente es para hoy antes. Lo demás es un pensamiento de locos o de niños que quieren la verdad o la luna en las grandes noches de verano, como esta en la que el alma es amplia y triste.

A. Así sea, señora, y soñemos. Comenzad, vos, que queréis comenzar, y tenéis la voz de las fuentes escondidas y los gestos, cuando acaso los abrís, de las palmeras que enseñan que hace viento, cuando no hay viento que toque los párpados ni brisa que roce en el rostro la distracción de los cabellos.

[SALOMÉ]. (Después de una breve pausa) Suponed que… No, suponer es perder… No, no es así como se sueña… Esperad, que quiero ver… (Otra pausa) Había, en el desierto que está más allá del desierto, en la parte de los desiertos en que hay rocas y una soledad más dura que las arenas y el alma más triste que junto a las palmeras, un hombre que quería un dios, porque no había dios de los hombres que habitara en esos desiertos ni en esa alma. Quería un dios con más sed que la del agua, y más hambre que la de los frutos que son como el agua y son dulzura, y hacia las que los niños tienden la mirada y la mano. Ese hombre se llamaba Juan, porque en mi sueño se llama Juan. Es un nombre de los hebreos, pero no hay felizmente profeta o rabino entre ellos que aún los usara. Ese hombre la clamaba porque la quería y no porque ella tuviera que ser. Pero él clamaba tanto, que sin duda lo oiría ese dios que él estaba creando. Y dios vendría a su hora, porque para quien sueña no hay hora, ni se pierde el alma de su destino.

[SALOMÉ]. Quiero, con todo mi sueño, que este sueño sea verdadero. Quiero que sea verdad en el futuro, como otros sueños son verdad en el pasado. Quiero que los hombres mueran, que los pueblos sufran, que las multitudes rujan o tiemblen, porque yo he tenido este sueño. Quiero que el profeta que he imaginado cree un dios y una nueva manera de ser de los dioses, y otras cosas, y otros sentimientos, y otra cosa que no sea la vida. Quiero un sueño tal, que nadie pueda realizarlo. Quiero ser la reina del futuro que nunca habrá, la hermana de los dioses que serán malditos, la madre virgen y estéril de los dioses que nunca existirán.

[SALOMÉ]. ¿Qué es ese grito en la noche, ahí abajo?

A. Le han traído al tetrarca la cabeza de un bandido.

[SALOMÉ]. Tráiganme la cabeza de un bandido. Tráiganmela en una bandeja de oro.

[SALOMÉ]. ¿De quién es esa cabeza?

X. De un bandido que mataba en las aldeas.

S[ALOMÉ]. No quiero que sea de un bandido que mataba en las aldeas. Quiero que sea de un santo que creaba dioses.

X. Era de un bandido que mataba en las aldeas.

S[ALOMÉ]. Acércame la bandeja (…) Mira cómo los párpados pueden ser los de un soñador, y la boca puede ser la de un pecador arrepentido o la de un asceta que nunca pecó. Las mejillas tienen arrugas – pueden ser por la vigilia o por el odio, pero eso importa poco, porque estamos creando la historia. Aparta un poco más la cabeza. Quiero verla, pero no quiero verla bien. Apártala aún más. Ahí, donde está, la luz del claro de luna le da como un maleficio. ¡Cuántos claros de luna más no le darán en el sueño que otros tendrán del mío! Llévala más lejos. Estoy cansada. He soñado demasiado. ¿Qué hombre era ese?

X. Era un bandido que mataba en las aldeas.

S[ALOMÉ]. ¿No te he dicho que esa cabeza era de un santo que creaba dioses? ¿Por qué me dices que era de un bandido que mataba en las aldeas? Llamad al capitán de la guardia – el que es rubio y triste.

(…) La princesa llama al capitán de la guardia.
Un murmullo vago. El capitán aparece.

CAP. ¿Me ha llamado, Señora?

S[ALOMÉ]. Sí. Ahí hay un hombre con una bandeja.

CAP. Lo veo, Señora.

S[ALOMÉ]. En la bandeja está la cabeza de un santo que creaba dioses. Fíjese en el hombre que tiene la bandeja en la mano.

CAP. Sí, Señora.

S[ALOMÉ]. Ese hombre me ha desmentido. Quiero que mate a ese hombre.

CAP. Señora, ¿que mate a ese hombre?

S[ALOMÉ]. Tiene la espada y mi orden. ¿Qué más razón puede querer?

(El capitán desenvaina la espada y mata al siervo. Este cae con la bandeja. La bandeja y la cabeza, separadas, retumban arriba y abajo en el suelo de piedra. Entra el Tetrarca.)

H[ERODES]. ¿Qué nuevo sueño es este o qué nuevo capricho? ¿Qué malicia ha hecho que se traiga aquí esta cabeza que pedí que me llevaran? ¿Quién la ha desviado de mis ojos a los tuyos?

S[ALOMÉ]. Es la cabeza de un bandido que mataba en las aldeas.

H[ERODES]. No. Esta es la cabeza de un santo que estaba creando dioses en los desiertos. Mandé que lo mataran y que me trajeran su cabeza. ¿Por qué la has pedido?

S[ALOMÉ]. ¿Por qué la he pedido? ¿Por qué le he pedido? No sé. No sé. ¿Qué es lo que has dicho, señor, y que me arranca toda el alma del corazón? No diga que me ha dicho la verdad, porque eso es demasiado para mi sueño. Ah, tal vez el sueño no crea sino que ve, y no hace sino lo que adivina. ¿Esa cabeza era de un santo que estaba en los desiertos?

H[ERODES]. ¿Qué vino de claro de luna te ha embriagado, que hablas como los muertos entre los vivos? Esa cabeza es de un santo que cantaba en los desiertos la memoria de los dioses futuros.

S[ALOMÉ]. ¿La cabeza? Déjenme verla de cerca. (Se arrodilla junto a ella) (La coge entre las manos) De da miedo y asco, como los dioses. Es la cabeza de un monstruo porque es la cabeza de un muerto. Tetrarca, ¿quién era este hombre?

H[ERODES]. Era un hombre que anunciaba en los desiertos, cantando y gritando, la llegada del fin de las cosas y de un dios que tendría piedad. Gritaba entre las rocas solitarias que los dioses antiguos eran como los hombres cuando viven, pero que el nuevo dios sería como los hombres cuando mueren, la imagen de la tristeza y de la verdad. Aún no he visto su cabeza. Levántela en la bandeja para que la vea.

(El capitán de la guardia mira alrededor. Se baja, coge la bandeja, coloca en ella la cabeza y la levanta ante la vista del Tetrarca. El Tetrarca se inclina hacia el frente y observa la cabeza con insistencia.)

H[ERODES]. Es la cara de un hombre que vivió en los desiertos y esperaba a nuevos dioses junto a las rocas. Parece que lloró mucho: las mejillas tienen surcos como los que el agua hacen en las rocas. Es terrible, pero por detrás de los párpados cerrados siento con mi propia mirada que los ojos son tristes… ¿Quién ha matado a ese esclavo?

CAP. Yo.

H[ERODES]. ¿Por qué lo has matado?

CAP. La princesa ha mandado que lo matara.

H[ERODES]. ¿Por qué has mandado que lo matara?

S[ALOMÉ]. No sé. No sé nada. Sucede algo tan terrible, que no sé cómo hablar. Lo he mandado matar porque dijo que esa cabeza era de un santo que creaba dioses en los desiertos.

H[ERODES]. Pero era de un santo que creaba dioses en los desiertos.

S[ALOMÉ]. No lo era: era de un bandido que mataba en las aldeas. Deje la bandeja en el suelo, retírese. Tengo sueño. Padre, tengo sueño. (A las ayas). Retiraos también vosotras. Padre, quiero dormir. Deje la bandeja en el suelo, con la cabeza. Padre, váyase usted también.

S[ALOMÉ]. Yo lo sabía bien. Yo lo sabía bien. No se puede soñar sin que Dios lo sepa. Mi mentira era verdad. Era cierto que en los desiertos había un santo que llamaba a un nuevo dios, a un dios triste como las rocas y solitario como las grandes llanuras. Yo bien sabía que alguien tendría que querer un dios que conoce los sueños y siente pena por el que no tiene nada.

Voy a hacer como si estuviera en un festín. Voy a bailar alrededor de tu cabeza hasta caer sin vida. Voy a danzar en el funeral de las cosas que murieron con tu vida. Mira, voy a hacer una danza al claro de luna, para decirlo todo.

Poesia ortónima

1909-1935

Textos

            Poesia ortónima até 1920
            Poesia ortónima 1921-1930
            Poesia ortónima 1931-1935

 

            Abdicação 

   Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

   Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

   Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

    Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

1913     

     

              CHUVA OBLÍQUA

                                         I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…
Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma…

                                     II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro…
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no facto de haver coro…
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa…

 

                                     III

A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Cheops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…
Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!…
                                 

                                      IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!…
As paredes estão na Andaluzia…
Há danças sensuais no brilho fixo da luz…
De repente todo o espaço pára…
Pára, escorrega, desembrulha-se…,
E num canto do tecto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados…

                                      V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel…
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim…
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal…
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois…
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol…
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar…
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos…
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje…

                              VI            https://youtu.be/BX14TEVc76k

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe…
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo…

   Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

   Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)

   Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal… E a música atira com bolas
À minha infância… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos …

   Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo…
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância…

   E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo…

1913

 

             Passos da Cruz 

                            VI

    Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu atual recorte humano e vil.

   Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil…

   Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi…
Eu próprio sou aquilo que perdi…

   E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri…

                         

                           XII

   Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha…

   “Em longes terras hás de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão…
Seu vulto perde-se na escuridão…
Só sua sombra ante meus pés caminha…

   Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora –

   Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir…

1916.

Poesía ortónima

Versiones 2017 y 2021

Textos

Poesía ortónima hasta 1920
Poesía ortónima 1921-1930
Poesía ortónima 1931-1935

 

                     Abdicación

   Cógeme, oh noche eterna, en tus brazos
Y llámame hijo tuyo. Soy un rey
Que de grado he abandonado
Mi trono de sueños y cansancios.

   Mi espada, pesada para brazos lasos,
He entregado a viriles manos firmes;
Y he dejado mi cetro y mi corona
En la antecámara, hechos pedazos.

   Mi cota de malla, tan inútil,
Mis espuelas de un tintineo vano
He dejado por la fría escalinata.

   De realeza he privado cuerpo y alma
Y he vuelto a la noche antigua y calma
Como el paisaje cuando muere el día.

         

    

        LLUVIA OBLICUA

                                            I

Atraviesa este paisaje mi sueño de un puerto infinito
y el color de las flores es transparente de las velas de grandes barcos
que parten de los muelles arrastrando en las aguas como sombra
los bultos al sol de aquellos árboles antiguos…
El puerto que sueño es sombrío y pálido
y este paisaje está lleno de sol a este lado…
Pero en mi espíritu el sol de este día es un puerto sombrío
y los barcos que salen del puerto son estos árboles al sol…
Liberado doblemente, me abandoné por el paisaje abajo…
El bulto del muelle es el camino nítido y tranquilo
que se levanta y se yergue como una pared,
y los barcos pasan por dentro de los troncos de los árboles
con una horizontalidad vertical,
y dejan caer amarras en el agua dentro de las hojas, una a una….
No sé quién me sueño…
De pronto toda el agua del mar del puerto es transparente
y veo en el fondo, como una estampa enorme que allí estuviese desplegada,
todo este paisaje, fila de árboles, camino ardiendo en ese puerto,
y la sombra de un barco más antiguo que el puerto que pasa
entre mi sueño del puerto y mi visión de este paisaje
y llega junto a mí, y entra dentro de mí,
y pasa al otro lado de mi alma…

                                       II

Se ilumina la iglesia dentro de la lluvia de este día,
y cada vela que se enciende es más lluvia que golpea las vidrieras…
Me alegra oír la lluvia porque ella es que el templo está encendido,
y las vidrieras de la iglesia vistas desde fuera son el sonido de la lluvia oído desde dentro…
El brillo del altar mayor es que yo no puedo casi ver los montes
a través de la lluvia que es oro tan solemne del altar…
Suena el canto del coro, latín y viento que me sacude la vidriera
y se oye chirriar el agua en el hecho de que hay coro…
La misa es un automóvil que pasa
a través de los fieles que se arrodillan en que hoy es un día triste…
de pronto el viento sacude en mayor brillo
la fiesta de la catedral y el ruido de la lluvia lo absorbe todo
hasta que solo se oye la voz del cura agua perdiéndose a lo lejos
como el sonido de ruedas de automóvil…
Y se apagan las luces de la iglesia
en la lluvia que cesa…

                                       III

La Gran Esfinge de Egipto sueña dentro de este papel…
Escribo – y ella se me aparece a través de mi mano transparente
y en la esquina del papel se yerguen las pirámides…
Escribo – me turbo al ver que la punta de mi pluma
Es el perfil del faraón Keops…
De repente me paro…
Se ha oscurecido todo… Caigo por un abismo hecho de tiempo…
Estoy enterrado bajo las pirámides escribiendo versos a la clara luz de esta lámpara
Y todo Egipto me aplasta desde arriba a través de los trazos que hago con la pluma…
Oigo cómo se ríe la Esfinge por dentro
el sonido de mi pluma corriendo por el papel…
Una mano enorme atraviesa que yo no puedo verla,
lo barre todo hacia la rincón del techo que queda detrás mí,
Y sobre el papel en que escribo, entre él y la pluma que escribe
yace el cadáver del faraón Keops, mirándome con ojos muy abiertos,
y entre nuestras miradas que se cruzan corre el Nilo
y una alegría de barcos abanderados yerra
en una diagonal difusa
entre lo que pienso y yo..
¡Funerales del faraón Keops en oro viejo y yo!…

                                      IV

¡Qué panderetas el silencio de este cuarto!…
Las paredes están en Andalucía…
Hay bailes sensuales en el brillo fijo de la luz…
De repente todo el espacio se detiene…
se detiene, se desliza, se desenvuelve…,
y en un rincón del techo, mucho más lejos de lo que él está,
unas manos blancas abren ventanas secretas
y hay ramos de violetas que caen
porque hace noche de primavera ahí fuera
sobre el hecho de yo esté con los ojos cerrados…

                                     V

Ahí fuera va un remolino de sol los caballos del carrusel…
Árboles, piedras, montes bailan parados dentro de mí…
Noche absoluta en la feria iluminada, claro de luna en el día fuera,
y todas las luces de la feria hacen ruido en las muros del huerto…
Grupos de muchachas con botijos en la cabeza
que pasan fuera, llenas de estar bajo el sol,
se cruzan con grandes grupos pegajosos de gente que va a la feria,
gente toda mezclada con las luces de las barracas con la noche y el claro de luna,
y los dos grupos se encuentran y se penetran
hasta formar solo uno que es los dos…
La feria y las luces de la feria y la gente que va a la feria,
y la noche que coge la feria y la levanta por el aire,
andan sobre las copas de los árboles llenos de sol,
andan visiblemente bajo las rocas que lucen al sol,
aparecen al otro lado de los botijos que las muchachas llevan en la cabeza,
y todo este paisaje de primavera es la luna sobre la feria,
y toda la feria con ruidos y luces es el suelo de este día de sol…
De repente alguien sacude esta hora doble como en un cedazo
y, mezclado, el polvo de las dos realidades cae
sobre mis manos llenas de dibujos de puertos
con grandes barcos que se van y no piensan volver…
Polvo de oro blanco y negro sobre mis dedos…
Mis manos son los pasos de esa muchacha que abandona la feria,
sola y contenta como el día de hoy…

                                     VI

 El maestro agita la batuta,
La lánguida y triste música irrumpe…
Me recuerda mi infancia, aquel día
En que jugaba junto al muro de un huerto
Lanzándole una pelota que tenía por un lado
El paso de un perro verde, y por el otro
Un caballo azul corriendo con un jinete amarillo…

   Prosigue la música, y he ahí que en mi infancia
De repente, entre el maestro y yo, un muro blanco,
Va y viene la pelota, ya un perro verde,
ya un caballo azul con un jinete amarillo…

   Todo el teatro es mi huerto, mi infancia
Está en todos los lugares y la pelota viene a tocar música,
Una música triste y vaga que pasea por mi huerto
Vestida de perro verde que se vuelve jinete amarillo…
(Tan rápida gira la pelota entre los músicos y yo)

   Lanzo mi pelota contra mi infancia y ella
Atraviesa todo el teatro que está a mis pies
Jugando con un jinete amarillo y un perro verde
Y un caballo azul que aparece por encima del muro
De mi huerto… Y la música le lanza pelotas
A mi infancia… y el muro del huerto está hecho de gestos
De batuta y de rotaciones confusas de perros verdes
Y caballos azules y jinetes amarillos…

    Todo el teatro es un muro blanco de música
Por donde un perro verde corre tras la nostalgia
De mi infancia, caballo azul con un jinete amarillo…
Y de un lado a otro, de derecha a izquierda,
Desde donde hay árboles y entre las ramas junto a la copa
Con orquestas tocando música,
Hasta donde hay hileras de pelotas en la tienda en que la compré
Y el hombre de la tienda sonríe en medio de los recuerdos de mi infancia…

    Y la música cesa como un muro que se derrumba,
La pelota rueda por el despeñadero de mis sueños interrumpidos,
Y sobre un caballo azul, el maestro, jinete amarillo volviéndose negro,
Agradece, dejando la batuta encima de la fuga de un muro,
Y se dobla, sonriendo, con una pelota blanca sobre la cabeza,
Pelota blanca que desaparece por su espalda abajo…

 

 

              Pasos de la cruz

                             VI

   Vengo de lejos y traigo en el perfil,
En forma nebulosa y apartada,
El perfil de otro ser que desagrada
A mi actual contorno humano y vil.

   Antes he sido acaso, no Boabdil,
Mas su última mirada, en el camino,
Al dejado rostro de Granada,
Contorno frío bajo unido añil…

   Hoy soy imperial nostalgia
De lo que vi de mí en la distancia
Yo mismo soy aquello que perdí…

   Y en este camino hacia lo Desigual,
Brotan en leve gloria marginal
Los girasoles del imperio que morí…

 

                           XII

   Ella iba, tranquila pastorcita,
Por el camino de mi imperfección.
La sigue, como un gesto de perdón,
Su rebaño, mi nostalgia…

   “En tierras lejanas has de ser reina»,
Le dijeron un día, pero en vano…
Su figura en la oscuridad se pierde…
Solo su sombra ante mis pies camina…

   Dios te dé lirios en lugar de esta hora,
Y en tierras lejanas a lo que hoy siento
Serás, reina no, sino solo pastora –

   Solo y siempre la misma pastorcita al ir,
Y yo seré tu regreso, ese indistinto
Abismo entre mi sueño y mi porvenir…

 

Poesia ortónima 1921-1930

                         NATAL

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

1922

Ela canta, pobre ceifeira,
julgando-se feliz talvez;
canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
de alegre e anônima viuvez,

ondula como um canto de ave
no ar limpo como um limiar,
e há curvas no enredo suave
do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
na sua voz há o campo e a lida,
e canta como se tivesse
mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
e a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

pesa tanto e a vida é tão breve!
entrai por mim dentro! Tornai
minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

1924

Poesía ortónima 1921-1930

                  NAVIDAD

Nace un dios. Otros mueren. La verdad
Ni vino ni se fue: cambió el Error.
Ahora tenemos otra eternidad,
y era siempre mejor lo que pasó.

Ciega, la ciencia labra la inútil tierra.
Loca, la fe vive el sueño de su culto.
Un nuevo dios es solo una palabra.
No procures ni creas: todo está oculto.

 

Ella canta, pobre segadora,
creyéndose feliz quizás;
canta y siega, y su voz, llena
de alegre y anónima viudez,

ondula como un canto de ave
en el aire limpio como el umbral,
y hay curvas en la trama suave
del son que está por cantar.

Oírla alegra y entristece,
en su voz está el campo y la lucha,
y canta como si tuviera
más razones para cantar que la vida.

¡Ah, canta, canta sin razón!
Lo que en mí siente está pensando.
¡Vierte en mi corazón
tu incierta voz ondulando!

¡Ah, poder ser tú, siendo yo!
Tener tu alegre inconsciencia,
y la conciencia de ello! ¡Oh cielo!
¡Oh campo! ¡Oh canción! ¡La ciencia

pesa tanto, y la vida es tan breve!
¡Entrad dentro de mí! ¡Haced
de mi alma vuestra sombra leve!
Después, llevándome, ¡pasad!

Poesia ortónima 1931-1935

      Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

1931

 

       EROS E PSIQUE

… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

Conta a lenda que dormia
uma Princesa encantada
a quem só despertaria
um Infante, que viria
de além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
se espera, dormindo espera.
sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
— ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e, vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a Princesa que dormia.

1933?

 

Poesía ortónima 1931-1935

    Autopsicografía

El poeta es un fingidor.
Finge tan completamente,
que llega a fingir que es dolor
el dolor que de verdad siente.

Y los que leen lo que escribe,
en el dolor leído sienten bien
no los dos que él ha sentido,
mas solo el que ellos no tienen.

Y así en las vías en redor
gira, entreteniendo la razón,
ese tren de cuerda 1
que se llama corazón.

1. Juguete

 

                  EROS Y PSIQUE

… y así vea, Hermano mío, que las verdades que le fueron dadas en el Grado de Neófito, y las que le fueron dadas en el Grado de Adepto Menor, son, aunque opuestas, la misma verdad.

                         Del ritual del grado de Maestre del Atrio en la Orden del Temple de Portugal

 

Cuenta la leyenda que dormía
una princesa encantada
a quien solo despertaría
un infante que vendría
de más allá del muro del camino.

Él, tras ser tentado, tenía
que vencer el mal y el bien,
antes de que, ya liberado,
dejara el camino errado
por el que a la Princesa viene.

La princesa Durmiente
si espera, durmiendo espera.
sueña en muerte su vida,
y le adorna la frente olvidada
una guirnalda verde de hiedra.

Lejos el Infante, esforzado,
sin saber qué fin tiene,
rompe el camino hadado.
Él por ella es ignorado.
Ella no es nadie para él.

Mas cada uno cumple su Destino
– ella durmiendo encantada,
él buscándola sin tino
por el proceso divino
que hace que exista el camino.

Y, aunque todo esté oscuro
por el camino adelante,
y falso, él viene seguro,
y venciendo camino y muro,
llega adonde en sueño ella vive.

Y, aún turbado por lo que tuvo,
a su cabeza, en marejada,
alza la mano, encuentra la hiedra,
y ve que él mismo era
la Princesa que dormía.

Poesias de Álvaro Campos

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

*****                                     

 

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

Poesías de Álvaro Campos

ESTANCO

No soy nada.
Nunca seré nada.
No puedo querer ser nada.
Aparte de eso, tengo en mí todos los sueños del mundo.

Ventanas de mi cuarto,
De mi cuarto, de uno de los millones del mundo que nadie sabe quién es
(Y si supieran quién es, ¿qué sabrían?)
Dais al misterio de una calle cruzada constantemente por gente,
A una calle inaccesible a todos los pensamientos,
Real, imposiblemente real, cierta, desconocidamente cierta,
Con el misterio de las cosas debajo de las piedras y de los seres,
Con la muerte poniendo humedades en las paredes y cabellos blancos en los hombres,
Con el Destino guiando la carroza de todo por la calle de nada.

Estoy hoy vencido, como si supiera la verdad.
Estoy hoy lúcido, como si estuviese a punto de morir,
Y no tuviera más hermandad con las cosas
Que una despedida, volviéndose esta casa y este lado de la calle
La hilera de carruajes de un tren, y una marcha silbada
Del interior de mi cabeza,
Y una sacudida de mis nervios y un crujir de los huesos en la ida.

Estoy hoy perplejo como quien pensó y halló y olvidó.
Estoy hoy dividido entre la lealtad que le debo
Al estanco al otro lado de la calle, como cosa real por fuera,
Y la sensación de que todo es sueño, como cosa real por dentro.

He fallado en todo.
Como no he tenido propósito alguno, tal vez todo fuera nada.
El aprendizaje que me dieron,
Bajé de él por la ventana de la parte trasera de la casa,
Fui hasta el campo con grandes propósitos.
Pero allí solo encontré hierbas y árboles,
Y cuando había gente era igual a la otra.
Me aparto de la ventana, me siento en una silla. ¿En qué he de pensar?

¿Qué sé de lo que seré, yo que no sé lo que soy?
¿Ser lo que pienso? ¡Pero pienso que soy tanta cosa!
Y hay tantos que piensan que son la misma cosa ¡que no puede haber tantos!
¿Genio? En este momento
Cien mil cerebros se conciben en sueño genios como yo,
Y la historia no fijará, ¿quién sabe?, ni a uno,
Y no habrá sino estiércol de tantas conquistas futuras.
No, no creo en mí.
¡En todos los manicomios hay enfermos locos con tantas certezas!
Yo, que no tengo ninguna certeza, ¿soy más cierto o menos cierto?
No, ni en mí…
¿En cuántas buhardillas y no buhardillas del mundo
No están a esta hora los genios-pasa-sí-mismos soñando?
¿Cuántas aspiraciones altas y nobles y lúcidas –
Sí, verdaderamente altas y nobles y lúcidas – ,
Y quién sabe si realizables,
Nunca verán la luz del sol real ni encontrarán oídos en la gente?
El mundo es para quien nace para conquistar
Y no para quien sueña que puede conquistarlo, aunque tenga razón.
He soñado más de cuanto Napoleón hizo,
He estrechado contra mi pecho hipotético más humanidad que Cristo,
He hecho filosofías en secreto que ningún Kant escribió.
Pero soy, y tal vez lo seré siempre, el de la buhardilla,
Aunque no viva en ella;
Seré siempre el que no nació para eso;
Seré siempre solo el que tenía cualidades;
Seré siempre el que esperó que le abrieran la puerta al lado de una pared sin puerta
Y cantó la canción del infinito en un gallinero,
Y oyó la voz de Dios en un pozo tapado.
¿Creer en mí? No, ni en nada.
Que me derrame la Naturaleza sobre la cabeza ardiente
Su sol, su lluvia, el viento que me encuentra el cabello,
Y el resto que venga si viene, o tiene que venir, o que no venga.
Esclavos cardíacos de las estrellas,
Conquistamos todo el mundo antes de levantarnos de la cama;
Pero nos despertamos y él es opaco,
Nos levantamos y él es ajeno,
Salimos de casa y él es la tierra entera,
Más el sistema solar y la Vía Láctea y lo Indefinido.

(¡Come chocolate, pequeña;
Come chocolate!
Mira que no hay más metafísica en el mundo que el chocolate.
Mira que todas las religiones no enseñan más que la confitería.
¡Come, pequeña sucia, come!
¡Ojalá pudiera yo comer chocolate con la misma verdad que tú te lo comes!
Pero yo pienso y, al quitarle la platilla, que es de hojas de estaño,
Lo tiro todo al suelo, como he tirado la vida.)

Pero al menos queda de la amargura de lo que nunca seré
La caligrafía rápida de estos versos,
Pórtico que parte hacia lo Imposible.
Pero al menos me consagro a mí mismo un desprecio sin lágrimas,
Noble al menos en el gesto pausado con que arrojo
La ropa sucia que soy, sin enumerar, en el curso de la cosas,
Y me quedo en casa sin camisa.

(Tú, que consuelas, que no existes y por eso consuelas,
O diosa griega, concebida como estatua que estuviera viva,
O patricia romana, imposiblemente noble y nefasta,
O princesa de trovadores, gentilísima y coloreada,
O marquesa del siglo dieciocho, descotada y lejana,
O mujer galante célebre del tiempo de nuestros padres,
O no sé qué cosa moderna – no concibo bien qué -,
Todo eso, sea lo que sea, que seas, ¡si puede inspirar, que inspire!
Mi corazón es un cubo vacío.
Como quienes invocan espíritus invocan espíritus, me invoco
A mí mismo y no encuentro nada.
Me acerco a la ventana y veo una calle con una nitidez absoluta.
Veo tiendas, veo paseos, veo los coches que pasan,
Veo a los entes vivos vestidos que se cruzan,
Veo a los perros que también existen,
Y todo esto me pesa como una condena al destierro,
Y todo esto es extranjero, como todo.)

He vivido, estudiado, amado, y hasta he creído,
Y hoy no hay mendigo al que no envidie solo por no ser yo.
Miro de cada uno los andrajos y las llagas y la mentira,
Y pienso: tal vez nunca has vivido, ni estudiado, ni amado, ni creído
(Porque es posible hacer la realidad de todo esto sin hacer nada de eso);
Tal vez solo hayas existido, como un lagarto al que le cortan el rabo
Y que es el rabo al otro lado del lagarto agitadamente.

He hecho de mí lo que no he sabido,
Y lo que podía hacer de mí no lo he hecho.
El dominó que vestí estaba equivocado.
Me conocieron enseguida por lo que no era y no lo desmentí, y me perdí.
Cuando quise quitarme la máscara,
Estaba pegada en mi cara.
Cuando me la quité y me miré al espejo,
Ya había envejecido.
Estaba borracho, ya no sabía ponerme el dominó que no me había quitado.
Arrojé la máscara y dormí en el vestuario
Como un perro tolerado por la gerencia
Por ser inofensivo
Y voy a escribir esta historia para probar que soy sublime.

Esencia musical de mis versos inútiles,
Ojalá te encontrara como algo que yo hiciera,
Y no me quedara siempre frente al estanco de en frente,
Pisando la conciencia de estar existiendo,
Como una alfombra con la que un borracho tropieza
O una esterilla que los gitanos robaron y no valía nada.

Pero el dueño del estanco ha llegado a la puerta y se ha quedado en la puerta.
Lo miro con la molestia de la cabeza mal girada
Y con la molestia del alma que entiende mal.
Él morirá y yo moriré.
Él dejará el letrero, y yo dejaré versos.
A cierta altura morirá también el letrero, y también los versos.
Después a cierta altura morirá la calle donde estuvo el letrero,
Y la lengua en que se escribieron los versos.
Morirá después el planeta que gira en el que todo esto se dio.
En otros satélites de otros sistemas algo como gente
Continuará haciendo algo como versos y viviendo debajo de cosas como letreros,
Siempre una cosa frente a otra,
Siempre una cosa tan inútil como otra,
Siempre lo imposible tan estúpido como lo real,
Siempre el misterio del fondo tan cierto como el sueño de misterio de la superficie,
Siempre esto o siempre otra cosa o ni una cosa ni la otra.

Pero un hombre ha entrado en el estanco (¿para comprar tabaco?)
Y la realidad plausible cae de repente encima de mí.
Casi me yergo enérgico, convencido, humano,
Y voy a intentar escribir estos versos en que digo lo contrario.

Enciendo un cigarrillo pensando escribirlos
Y saboreo en el cigarrillo la liberación de todos los pensamientos.
Sigo el humo como una ruta propia,
Y gozo, en un momento sensitivo y competente,
La liberación de todas las especulaciones
Y la conciencia de que la metafísica es una consecuencia de no estar bien.

Después me echo para atrás en la silla 
Y continúo fumando.
Mientras el Destino me lo conceda, seguiré fumando.

(Si yo me casara con la hija de mi lavandera
Tal vez fuera feliz.)
Visto esto, me levanto de la silla. Me acerco a la ventana.

El hombre ha salido del estanco (¿metiéndose el cambio en el bolsillo de los pantalones?).
Ah, lo conozco: es Esteves sin metafísica.
(El dueño del estanco se ha llegado a la puerta.)
Como por un instinto divino, Esteves se ha girado y me ha visto.
Me ha hecho una señal de adiós, le he gritado ¡Adiós, Esteves!, y el universo
Se me reconstruye sin ideal ni esperanza, y el dueño del estanco ha sonreído.

*****

 

Todas las cartas de amor son
ridículas
no serían cartas de amor si no fueran
ridículas.

También escribí en mi tiempo cartas de amor,
como las otras,
ridículas.

Las cartas de amor, si hay amor,
tienen que ser
ridículas.

Pero, al final,
solo las criaturas que nunca escribieron
cartas de amor
es que son
ridículas.

Quién me diera el tiempo en que escribía
sin darme cuenta
cartas de amor
ridículas.

La verdad es que hoy
son mis recuerdos
de esas cartas
los que son
ridículos.

(Todas las palabras esdrújulas,
como todos los sentimientos esdrújulos,
son naturalmente
ridículos.)

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