Página dedicada a mi madre, julio de 2020

Original

Drama e poesia

1909-1935

Textos

O marinheriro (drama estático em um quadro)
Fragmentos dramáticos (Sakyamuni, Diálogo na sombra, Diálogo no jardim de palácio, A morte do príncipe, Salomé)
Poesia ortónima
Poesia de Álvaro Campos

 

                                                  O MARINHEIRO
                                     (DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO)

     Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.

     Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago de luar.

PRIMEIRA VELADORA. Ainda não deu hora nenhuma.

SEGUNDA. Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia.

TERCEIRA. Não: o horizonte é negro.

PRIMEIRA. Não desejais, minhas irmãs, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso…

SEGUNDA. Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?

PRIMEIRA. Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passado… As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?…

                                    (Uma pausa)

A MESMA. Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena…

SEGUNDA. Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.

TERCEIRA. Não. Talvez o tivéssemos tido…

PRIMEIRA. Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeássemos?…

TERCEIRA. Onde?

PRIMEIRA. Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

TERCEIRA. De quê?

PRIMEIRA. Não sei. Porque o havia eu de saber?

                                  (Uma pausa)

SEGUNDA. Todo este país é muito triste… Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe… Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse…

PRIMEIRA. Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!… O mar de outras terras é belo?

SEGUNDA. Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca…

                                    (Uma pausa)

PRIMEIRA. Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?

SEGUNDA. Não, não dizíamos.

TERCEIRA. Por que não haverá relógio neste quarto?

SEGUNDA. Não sei… Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria… Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

PRIMEIRA. Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma… Estou procurando não olhar para a janela… Sei que de lá se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes, outrora… Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem… Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar… Foi longe daqui que isto pôde ser… Quando virá o dia?…

TERCEIRA. Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira… sempre, sempre, sempre…

                                     (Uma pausa)

SEGUNDA. Contemos contos umas às outras… Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal… Só viver é que faz mal… Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes… Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho… Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo… Mas o passado — por que não falamos nós dele?

PRIMEIRA. Decidimos não o fazer… Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos… Com a luz os sonhos adormecem… O passado não é senão um sonho… De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou… O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?… Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas juntas… O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa… Sinto-o envolver-me como uma névoa… Ah, falai, falai!…

SEGUNDA. Para quê?… Fito-vos a ambas e não vos vejo logo… Parece-me que entre nós se aumentaram abismos… Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos… Este ar quente é frio por dentro, naquela parte que toca na alma… Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelo cabelos — é o gesto com que falam das sereias… (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.

PRIMEIRA. Eu também devia ter estado a pensar no meu…

TERCEIRA. Eu já não sabia em que pensava… No passado dos outros talvez…, no passado de gente maravilhosa que nunca existiu… Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho… Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe, ou mais perto?… Há alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?…

SEGUNDA. As mãos não são verdadeiras nem reais… São mistérios que habitam na nossa vida… às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus… Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se… Para onde se inclinam elas?… Que pena se alguém pudesse responder!… Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes… É sempre longe na minha alma… Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse…

TERCEIRA. As vossas frases lembram-me a minha alma…

SEGUNDA. É talvez por não serem verdadeiras… Mal sei que as digo… Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando… Mas eu devo ter vivido realmente à beira-mar… Sempre que uma cousa ondeia, eu amo-a… Há ondas na minha alma… Quando ando embalo-me… Agora eu gostaria de andar… Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer… Dos montes é que eu tenho medo… É impossível que eles sejam tão parados e grandes… Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm… Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse feliz…

PRIMEIRA. Por mim, amo os montes… Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia… Do lado de lá, onde mora minha mãe, costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras terras… Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do caminho… A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos pensamentos… E os nossos sonhos eram de que as árvores projectassem no chão outra calma que não as suas sombras… Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais alguém… Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar…

SEGUNDA. Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar… A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas… Eu era pequena e bárbara… Hoje tenho medo de ter sido… O presente parece-me que durmo… Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém… O mar era grande de mais para fazer pensar nelas… Na vida aquece ser pequeno… Éreis feliz, minha irmã?

PRIMEIRA. Começo neste momento a tê-lo sido outrora… De resto, tudo aquilo se passou na sombra… As árvores viveram -no mais do que eu… Nunca chegou nem eu mal esperava… E vós irmã, por que não falais? 

TERCEIRA. Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais… Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente… Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura, através do mistério de falar… E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?…

PRIMEIRA. Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!… Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso… Falai, portanto, sem reparardes que existis… Não nos íeis dizer quem éreis?

TERCEIRA. O que eu era outrora já não se lembra de quem sou… Pobre da feliz que eu fui!… Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos… Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me… Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água… Tinham um sorriso só deles, independente do meu… Era sempre sem razão que eu sorria… Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar…

PRIMEIRA. Não falemos de nada, de nada… Está mais frio, mas por que é que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está… Para que é que havemos de falar?… É melhor cantar, não sei porquê… O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar-nos… Eu podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que vo-la cante?

TERCEIRA. Não vale a pena, minha irmã… quando alguém canta, eu não posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar…

                                  (Uma pausa)

 

PRIMEIRA. Breve será dia… Guardemos silêncio… A vida assim o quer. Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água… Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago que ele nunca existiu… Lembrar-me dele é como não me poder lembrar de nada… Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?…

SEGUNDA. À beira-mar somos tristes quando sonhamos… Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado… Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma… Tudo é muito e nós não sabemos nada… Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?

PRIMEIRA. Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de que no-lo conteis… Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E se não é belo, esperai…, contai-o só depois de o alterardes…

SEGUNDA. Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim… Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou… Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho… Não sei onde ele teve princípio… E nunca tornei a ver outra vela… Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar…

PRIMEIRA. Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes…

SEGUNDA. Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qualquer… Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto…

PRIMEIRA. Por que é que me respondestes?… Pode ser… Eu não vi navio nenhum pela janela… Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena… Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar…

SEGUNDA. Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas… Não vi se alguma vez pousavam… Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali… Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas… Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

 

PRIMEIRA. Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!…

TERCEIRA. Deixai-a falar… Não a interrompais… Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram… Adormeço para a poder escutar… Dizei, minha irmã, dizei… Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar…

SEGUNDA. Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal… Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível… Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta…

                                   (uma pausa)

 

PRIMEIRA. Minha irmã, por que é que vos calais?

SEGUNDA. Não se deve falar demasiado… A vida espreita-nos sempre… Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber… Quando falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho… Vede: o horizonte empalideceu… O dia não pode já tardar… Será preciso que eu vos fale ainda mais do meu sonho?

PRIMEIRA. Contai sempre, minha irmã, contai sempre… Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam… O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas… Não torçais as mãos. Isso faz um ruído como o de uma serpente furtiva… Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma…

SEGUNDA. Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto… São três a escutar… (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo ). Três não… Não sei… Não sei quantas…

TERCEIRA. Não faleis assim… Contai depressa, contai outra vez… Não faleis em quantos podem ouvir… Nós nunca sabemos quantas coisas realmente vivem e vêem e escutam… Voltai ao vosso sonho… O marinheiro. O que sonhava o marinheiro?

SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta). Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos… Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas… Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas… Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo… Depois viajava, recordando, através do país que criara… E assim foi construindo o seu passado… Breve tinha uma outra vida anterior… Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara… Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril… Tudo era diferente de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido… Exigis que eu continue?… Causa-me tanta pena falar disto!… Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos…

TERCEIRA. Continuai, ainda que não saibais porquê… Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço…

PRIMEIRA. Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim? Em todo o caso falai… Importa tão pouco o que dizemos ou não dizemos… Velamos as horas que passam… O nosso mister é inútil como a Vida…

SEGUNDA. Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar… Quis então recordar a sua pátria verdadeira…, mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele… Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara… Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara… E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido… Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava… E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido… Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer… Ó minhas irmãs, minhas irmãs… Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse… Qualquer coisa que explicaria isto tudo… A minha alma esfria-me… Mal sei se tenho estado a falar… Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos…

PRIMEIRA (numa voz muito baixa). Não sei que vos diga… Não ouso olhar para as cousas… Esse sonho como continua?…

SEGUNDA. Não sei como era o resto… Mal sei como era o resto… Por que haverá mais?…

PRIMEIRA. E o que aconteceu depois?

SEGUNDA. Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?… Veio um dia um barco… Veio um dia um barco… — Sim sim… só podia ter sido assim… — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro.

TERCEIRA. Talvez tivesse regressado à pátria… Mas a qual?

PRIMEIRA. Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?

SEGUNDA. Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa?
                                    (uma pausa)

TERCEIRA. Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha?

SEGUNDA. Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

PRIMEIRA. Ao menos, como acabou o sonho?

SEGUNDA. Não acabou… Não sei… Nenhum sonho acaba… Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?… Não me faleis mais… Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é… Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço… Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?… Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho… Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite… Não estejais silenciosas… Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba… Vede, começa a ir ser dia… Vede: vai haver o dia real… Paremos… Não pensemos mais… Não tentemos seguir nesta aventura interior… Quem sabe o que está no fim dela?… Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite… Não falemos mais disto, nem a nós próprios… É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.

TERCEIRA. Foi-me tão belo escutar-vos… Não digais que não… Bem sei que não valeu a pena… É por isso que o achei belo… Não foi por isso, mas deixai que eu o diga… De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente…

SEGUNDA. Tudo deixa descontente, minha irmã… Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo… De eterno e belo há apenas o sonho… Por que estamos nós falando ainda?…

PRIMEIRA. Não sei… (olhando para o caixão, em voz mais baixa) Por que é que se morre?

SEGUNDA. Talvez por não se sonhar bastante…

PRIMEIRA. É possível… Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?…

SEGUNDA. Não, minha irmã, nada vale a pena…

TERCEIRA. Minhas irmãs, é já dia… Vede, a linha dos montes maravilha-se… Por que não choramos nós?… Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também… Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos… Ela de que sonharia?…

PRIMEIRA. Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos…

                                     (uma pausa)

SEGUNDA. Talvez nada disto seja verdade… Todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho… Olhai bem para tudo isto… Parece-vos que pertence à vida?…

PRIMEIRA. Não sei. Não sei como se é da vida… Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente…

SEGUNDA. Não vale a pena estar triste de outra maneira… Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver… Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo… Vede, o céu é já verde… O horizonte sorri ouro… Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar…

PRIMEIRA. Chorastes, com efeito, minha irmã.

SEGUNDA. Talvez… Não importa… Que frio é isto?… Ah, é agora… é agora!… Dizei-me isto… Dizei-me uma coisa ainda… Por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?…

PRIMEIRA. Não faleis mais, não faleis mais… Isso é tão estranho que deve ser verdade. Não continueis… O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir… Tenho medo do que não chegastes a dizer… Vede, vede, é dia já… Vede o dia… Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora… Vede-o, vede-o… Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais… Vede-o a vir, o dia… Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram… Se nada existisse, minhas irmãs?… Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?… Porque olhastes assim?…

(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.)

A MESMA. Que foi que dissestes e que me apavorou?… Senti-o tanto que mal vi o que era… Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já não tenha tanto medo como dantes… Não, não… Não digais nada… Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não deixar pensar… Tenho medo de me poder lembrar do que foi… Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como o haver Deus… Devíamos já ter acabado de falar… Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido… O que é entre nós que nos faz falar prolonga-se demasiadamente… Há mais presenças aqui do que as nossas almas.. O dia devia ter já raiado… Deviam já ter acordado… Tarda qualquer coisa… Tarda tudo… O que é que se está dando nas coisas de acordo com o nosso horror?… Ah, não me abandoneis… Falai comigo, falai comigo… Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz… Tenho menos medo à minha voz do que à ideia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que estou falando…

TERCEIRA. Que voz é essa com que falais?… É de outra… Vem de uma espécie de longe…

PRIMEIRA. Não sei… Não me lembreis isso… Eu devia estar falando com a voz aguda e tremida do medo… Mas já não sei como é que se fala… Entre mim e a minha voz abriu-se um abismo… Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois do horror que nos dissestes… Começo a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de aqueles…

TERCEIRA (para a SEGUNDA). Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.

SEGUNDA. São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus talvez saiba porquê… Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não reparamos que é dia?…

PRIMEIRA. Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo… Que estranha que me sinto!… Parece-me já não ter a minha voz… Parte de mim adormeceu e ficou a ver… O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo… Já não sei em que parte da alma é que se sente… Puseram ao meu sentimento do meu corpo uma mortalha de chumbo… Para que foi que nos contastes a vossa história?

SEGUNDA. Já não me lembro… Já mal me lembro que a contei… Parece ter sido já há tanto tempo!… Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar para as coisas!… O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos ideia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar…

PRIMEIRA. Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para falar… Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis… A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela minha pele… Não sei o que é isto, mas é o que sinto… Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a dizer… Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende? 

SEGUNDA. Não sinto nada… Sinto as minhas sensações como uma coisa que se sente… Quem é que eu estou sendo?… Quem é que está falando com a minha voz?… Ah, escutai…

PRIMEIRA e TERCEIRA. Quem foi?

SEGUNDA. Nada. Não ouvi nada… Quis fingir que ouvia para que vós supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir… Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida… Quem é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir?

PRIMEIRA. Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim… Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às outras as ideias de todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?…

TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada). Ah, é agora, é agora… Sim, acordou alguém… Há gente que acorda… Quando entrar alguém tudo isto acabará… Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo… É dia já. Vai acabar tudo… E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho…

SEGUNDA. Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredito…     

   Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

 

1913. Orpheu , 1. Lisboa, 1915

Fragmentos dramáticos

SAKYAMUNI

SAKYAMUNI. Quantas vezes, antes de a verdade ter em mim a sua aurora, eu, já na antemanhã da revelação, quando a alma em mim pressentia a ilusão do mundo, dizia, dentro do meu coração, para o Mestre escondido que se aproximava: Deixa que ainda um momento eu descanse à sombra da árvore do esquecimento, e um momento mais me banhe nas águas do rio da Aparência. Suaves são as flores, e são falsas; doce, pela tarde de todos os estios, o canto morno das aves, e elas são aparência apenas. É quente ter pai ou mãe, e ter esposa e filhos, e tudo isso eu sei que não é mais, no Todo Imanente, que a sombra que a árvore lança no chão, e não o chão nem a árvore, do que o vento que passa e esquece, e não é o ar onde passa nem as árvores em que mexe, nem as flores cujo perfume leva para longe, entre cicios.

SEMICORO. Boddhisattva, todos são tentados e à passagem de todas as portas alguma cousa nos quer fazer olhar para o lado. Mas o sábio caminha sem olhar para o lado, porque à Direita está a Verdade falsa, e à Esquerda a Mentira verdadeira; uma e outra filhas do Lado e do Desvio, fruto sombrio da árvore do Aniquilamento.

SEMICORO. Os raios do sol não são o sol, nem o trigo o pão que há-de ser. Tudo, porém, é uma só cousa. Sete são as portas da Iniciação e todas as portas são a mesma Porta. Sete são os desejos que prendem o homem à terra e à ilusão, sete as libertações; sete, também, as renúncias com que a alma se liberta. Fazei por que a Morte guarde os portais do teu Desejo e a Peste caia por sobre as cidades da tua Ambição. Filho, as horas regulares medem o tempo para os homens, como os desejos e as esperanças marcam o tempo para as almas; mas as horas, como os desejos, são frutos da Árvore da Morte, a que damos o nome a Árvore da Vida. Boddhisattva, quem passa as sete portas, que lhe não doa deixar tanto amor? A mãe que velou a nossa infância, e o pai a quem confiámos os nossos primeiros cuidados, o irmão com quem nos sentávamos à porta, a irmã que vinha chamar-nos ao jardim; aquela que amámos e foi nossa esposa, e de quem são filhos os nossos filhos e irmãs as esperanças que temos na sua fortaleza e na sua sabedoria; os nossos filhos, que são a nossa sombra na carne, a nossa esperança feita Vida — tudo isto devemos nós considerar como o fumo que no silêncio da tarde deixa devagar os cimos das casas e se perde no ar como o voo das aves que não voltam nunca? Tivemos amigos, a quem demos aquela metade da nossa alma que é a confiança, e discípulos que quiseram receber da nossa mão a ciência, aquela esmola que não dá orgulho a quem a dá, e que não faz humildade em quem a recebe. Quisemos que os que eram nossos sócios na vida fossem felizes, que os propínquos nos amassem como a pais, e que os homens da nossa terra dissessem: ele foi entre nós como a sombra no estio e como a lareira no inverno; ele passou, ficando no exemplo e no nosso amor. Tudo isso, ó Boddhisattva, valerá tão pouco que hajamos de o pôr de lado como um fardo inútil, ou que passar por cima dele como por cima do riacho que atravessa o caminho? Tudo quanto vimos somos nós, e tudo quanto amámos somos nós. A tua mãe e o teu pai és tu, a tua esposa és tu, e és tu os teus próprios filhos. O que desejaste e o que amaste é o corpo do teu desejo, feito não da terra, mas da alma, não do barro das horas, mas do limo humilde das afeições. Se houvéssemos só de deixar aquilo que não amamos, que mais valeríamos ante o Invisível que os animais do campo, que fogem ao que temem, e abandonam o que não querem? Matai o desejo, e ao amor crucificai-o, para que ao terceiro dia da Renúncia suba ao céu e assente à mão direita da Primeira Encarnação do Invisível. Todos os laços são cadeias, e ergástulos todos os lares. Sobe, Discípulo, o caminho estreito; busca perder-te para te encontrares, abdica-te de ti para seres tu; entra na noite para encontrares o dia. Tudo é o contrário e a sombra cerca-nos. Dorme para a ilusão do Mundo.

A. Boddhisattva, estás agora quase no princípio e no fim do caminho (sem fim nem princípio). Ouvem-se já os teus passos para além do Grande Limiar. Breve, sem tempo em que seja breve, teu vulto sem corpo florirá a libertação final. A veste esplêndida que torna invisível a Personalidade cairá, ó Senhor, sobre os teus ombros. Bendito sejas tu que, pelo teu grande amor, ganhaste a Altura e a Redenção!

B. Bendito sejas, que chorando cegaste até veres, e sofrendo te rojaste até ao Cimo. Bendito, que vais vestir como um manto régio a negação positiva do Universo! Bendito que viveste o puro Amor, sem limites nem margens, e agora és o oceano de ti próprio, a hora absoluta do teu compassivo meditar!

A. Teus pés, Boddhisattva, rasgaram-se nas pedras de todos as caminhos da piedade, tuas mãos sangraram com todas as durezas da misericórdia, teus olhos secaram de terem chorado por todas as angústias, teus ouvidos não ouviram senão os gemidos. Agora teu amor chegou ao limiar de seres o mesmo que o Todo sem nome. Vais entrar para o sossego imenso de ti próprio, absoluto idêntico com todos os absolutos, pessoa infinita de todos os universos.

B. Bendito e exaltado sejas! Tanto amaste, que hoje és tu próprio em abstracto e divino. Tanto choraste que és hoje a lágrima suprema, a queda misericordiosa e sublime no abismo impessoal do teu Amor. Tanto desejaste todos os teus bens para todos os homens, tanto amaste Tudo em todos, tanto benzeste de auxílio e de carinho todos em Tudo, que hoje entrarás para Ti pela porta todas-as-portas, chegarás a ti pela negação absoluta de ti próprio. Bendito sejas!

O NIRVANA. Repousa no meu seio, que és tu, na minha certeza, que é que o atingiste em ti. Na minha noite não há escuridão nem luz, e no meu sossego não há descanso nem paz. Dorme de todo o teu amor pelos outros na minha recompensa sem estrelas.

[SAKYAMUNI]. Onde pus o meu amor ele está ainda. Onde amei, amo. Onde chorei, ainda choro. Onde consolei, consolo. Que será de mim se entrar para a paz, se o mundo não tem a paz? Que será de mim se entrar para Mim, com toda a Mágoa fora de mim e toda a imperfeição abandonada como um filho. A tua paz suprema é uma tentação sem forma; a tua recompensa é o sossego que eu não quero… Não me abras os braços, ó Nirvana!…

NIRVANA. Suaves são os meus braços de sombra e os meus cabelos de esquecimento — em torno à tua alma absoluta eles se enrolarão como a Verdade Eterna. Embalar-te-á sem movimento, para sempre além de sempre, o meu colo sem fundo nem lugar, e o teu sono será o amor que tiveste, e bondade que derramaste, e as lágrimas (…) do mundo.

[SAKYAMUNI]. Ai dos que sofrem, que sofrem ainda! Ai dos que gemem que gemem sempre! Ai dos tristes e dos oprimidos, que eu deixaria ao desamparo na tua noite em que nada lembra — nem os rios do meu amor nem as areias do meu carinho. Tu não tens poder para me tentar. Sete, e dentro de sete, sete vezes sete, foram as tentações do meu caminho. Chamaram por mim as cousas da terra, com vozes de filho que chamam a mãe. Choraram por mim como (…) Passei para além de tudo como o rio, que flui para o mar, e que, se não vai pela direita, é pela esquerda, e vai sempre, e o mar espera-o ao longe.

[SAKYAMUNI]. Ó olhos da Ciência, ó Braços da Compaixão! Encarnarei em mim todo o mal do mundo — o mal passado e o mal presente e o mal futuro. Assim me tornarei o Mal Absoluto. E como o mal é o nome positivo da Negação, tornado que eu seja o Mal Absoluto, estarei tornado o Nada Absoluto, e, logo, extinto completamente morto de todo, sem passado em que houvesse sido, ou futuro em que venha a ser, ou presente, mesmo, em que seja mesmo o Nada em que me haja tornado. Serei o Único Morto, a Morte Toda. E, fora de Mim, o Ser Puro; o Universo liberto do mal e da negação, será Deus em todas as eternidades.

— E de ti, ó Sol do Amor, que será? Poderás tu escolher o Nada e o Mal e a Morte só para ti? Ousarás tu querer esse sacrifício da estatura do Infinito? Tu, que te afastaste do Mal, como poderás tu dar-te a ele até seres o seu corpo? Tu, que negaste a negação, poderás tu transformar-te nela? Poderás tu ser Deus com o Corpo da sombra e da maldade?

— Tudo é possível ao Amor. Ele, que na sua humana forma humana constrói pontes sobre os abismos, e abre estradas de impossível para impossível, em mim, tornado absoluto, será o Fogo sem Chama ascendendo todo o Universo.

B[OUDHISATTVA]. A carne do meu corpo é a dor universal, corre nas veias da minha vida o sangue das lágrimas dos homens.

N[IRVANA]. Grande é o repouso do meu seio de sonhos. A minha noite não tem o cansaço e a angústia de ter um dia depois dela, (ó Venerável) Arhat, os meus braços são de Vida e Esquecimento…

B[OUDHISATTVA]. Grande é aquele que, não querendo possuir, também não quer esquecer. Todas as mães são a minha mãe que chora, todas as filhas são as minhas filhas que me chamam. A tua porta aberta está fechada dentro do meu amor (…) o meu ser compassivo torna-se o ser universal. O manto da minha compaixão cairá sobre as cousas e elas terão o repouso de não verem a luz da ilusão. Eu próprio, pelo meu grande amor, serei o Nirvana. Terão repouso e fim na carne da minha alma todas as almas que sofrem.

N[IRVANA]. Arhat, o rio não volta à nascente, nem (…)

[SEMICORO]. A. Tornado a Negação Absoluta, extinguir-te-ás de todo, ó Boddhisattva. O único Nada serás tu. O resto será o grande e puro, limpo e uno Universo. A tua Morte será a vida de tudo. Tornado a Diversidade Absoluta, o Abismo Puro, morrerás de ti próprio. E tudo será o Nirvana atingido, e o Fim [dourado] da Estrada. O resto é o nada onde tu és a morte sem nada seres. O teu sacrifício não tem Deus. A tua Renúncia é um universo — o universo-abismo, o abismo do abismo, o Nada não em si mas em Nada.

B. Mas que é feito de ti, Senhor, quando assim for? Tu, [o supremo] Bem, por o seres te tenta o Mal Absoluto. Tu, o Tudo, te tenta o Nada. Vede como nesse futuro sem tempo, todo o Universo dos Universos se ergue uno e divino. O mal, tornado mal absoluto, torna-se o puro Nada, e, assim, para sempre desaparece. Tu, Senhor, por teu amor sem limite nem prémio, tu te tornaste o puro Nada para que o mundo pudesse ser Tudo; tu te tornaste a Única Morte, a Morte…

A. Agora que renunciaste para sempre, que te condenaste eternamente à dor eterna; agora que, sem lar nem mesmo em ti próprio, sem mãe mesmo no teu carinho, te arrastas puro de dor, pelo erro doloroso do mundo — agora que será de ti, ó Senhor da Compaixão? Sofre o mundo ainda, embora o alivies, morre a vida ainda, embora a ames? Tens mais que matar em ti, para que o mundo viva? Pára, não ouses mais mágoas e mais dores. Há mais dores, acaso, que tu ouses? Há mais mágoas que atentes contra ti? Derrama eternamente, homem eterno, o bálsamo do teu carinho sobre as cousas. Rocio, amacia de brilhantes o verde matutino das ervas, e de luzes de sol agora limpa a superfície nítida das flores. Corre, suave sussurro, nos rios para todos os mares (1). Renunciaste à vida pessoal, ó Boddhisattva, e renunciaste à vida impessoal. Que mais alturas te matas?

— Renunciarei agora a toda a Vida, morrerei de todo no mundo. Que vale essa frase sem lugar que enche de sombra e de medo os olhos inúmeros do mundo?

— Senhor, tu vais ser todos os crimes, todos os vícios, todos os males, Senhor, vais ser todas as algemas e todos os algemadores. Como podes tu querer ser o Mal, como podes tu querer ser a limitação?

—Tornado uno com o mal, com a imperfeição e com a mágoa, impersonalizá-los-ei em mim. E o mundo dividido e diverso, o universo múltiplo e sucessivo, tornado impessoal em mim, deixará de ser dividido para ser uno, deixará de ser imperfeito para ser a Perfeição Suprema.

— E tu, Senhor, que serás?

— Tornado o Puro Mal, o Puro Imperfeito, deixarei de todo de ser. Encarnará em Mim o Nada Absoluto e eu tornado o Abstracto (…)

[CORO]. Benditos sejam os prados, porque não serão mais os prados, e os bosques porque não serão mais os bosques, e o correr dos rios, porque não será mais de rios, nem será correr. Tudo será como era, e a Perfeição.

— O SER SEM SER — Só eu sou. Tudo é uno e tudo não é uno. Nada é e tudo é. E tudo isto é nada. Só eu sou.

Além de tudo está tudo, e aquém de nada, nada. Só eu sou.
Tudo é o ser, e tudo é o não ser. Só eu sou.
Sem ser nem não ser, só eu sou.

[CORO]. Todo este futuro sem tempo é o meu passado. Só eu sou. Para sempre de sempre num lugar sem espaço, num futuro sem tempo, Senhor!

2.º — Quem sabe se ele, tornado o Nada, não foi um Todo para outro Deus, de quem este seja a diferença ou o sonho? Quem sabe se ele não é o Todo por ter morrido (para) Tudo?

 

 

Fim

Brilhai eternamente no tempo, astro do mundo em que brilhais. Voai sem fim nem cansaço, aves da terra de que sois aves.

[CORO] – Cantai nas árvores das estradas, ó aves que consolais o ouvido dos tristes! Correi docemente na sombra, ó fontes! Dormi quietos na relva calma, ó feras agora em sossego! Dai a vossa alegria a todos os ventos, cantai a vitória do amor em todas as brisas! Morreu a sua vida o Salvador do Mundo!

Para Ele não haverá nada. Só para Ele nada haverá! Tudo quanto sofreu será consolado nesta hora sem tempo. Tudo quanto fez mal agora passará a nunca o ter feito. Tudo quanto sofreu o mal feito eis que nunca sofreu hoje, e nunca soube o que era o sofrimento! Só Ele, o Coração Amante do Universo, é volvido a Sombra e [o] Apagamento! Só Ele vai esquecer de todo, levando em seu seio nocturno todo o mal que nele concebeu para alívio e descanso do Mundo. Só Ele desaparece, só Ele é nada. O próprio amor a ele acabará, porque ele acabará. Não há para ele a recompensa, porque ele passa agora, no triunfo maior do que os deuses, a não ser nada, a nunca ter sido cousa nenhuma. Através do Sofrimento Absoluto ele entra na Morte sem resgate.

O Mundo é livre! O Mundo é Deus! As cousas renascem em extemporâneo e Divino!

Raiam Deus todas as luzes, aquiescem Deus todas as Sombras, todos os espaços são Deus.

As flores desabrocham Deus, cada árvore é uma divindade todas elas, cada folha é Deus Todo.

Este é o Mundo! Este é o Mundo! Nunca houve tempo nem espaço! Nunca houve alegria nem dor!

O que era bom é hoje o Bem. O que era doce e humano na imperfeição é hoje a Perfeição.

Tudo quanto era divisão de repente (?) não é, nem nunca foi (subitamente nunca foi).

O que se perdeu nunca se tinha perdido!

As pequenas ternuras são grandes hoje com o calor de pequenas. As afeições da terra são hoje do Céu em que a terra toda está. Todos os filhos estão com todas as mães. Nada falta, nada sobra, nada limita. Tudo é tudo em Deus.

[CORO] – Acabou o amor, porque nada se busca, estando tudo encontrado. O que era amado por ser pequeno continua a ser amado por ser pequeno, mas é grande. O que era amado por ser humano continua a ser amado por ser humano, mas é divino. O que era amado por ser imperfeito continua a ser amado por ser imperfeito, mas é perfeito. Tudo tem o que tinha de belo e Deus a mais. Tudo está liberto. Nada era em vão.

s.d

(1) «As três renúncias de Sakyamuni:
a) a renúncia à vida terrena, à vida das emoções, a renúncia à vida da personalidade.
b) a renúncia à vida nirvânica, a recusa a vestir a veste de Nirmanakaya.
c) a renúncia à vida impessoal, à vida pura e grande, para se tornar humano e interior às cousas do mundo, esgotando através de si todo o mal que no mundo existe.»

DIÁLOGO NA SOMBRA

A. Quisera saber como és feito por dentro… Como é a tua vontade por dentro, que coisas há naquela parte do teu sentir que tu não medes que sentes.

E. Tão feminina nisso… E és da matéria das coisas irreais!

A. Quando levantas um braço eu queria saber porque coisas do além, tu levantas esse braço… O que há por detrás de o tu quereres levantar e de saberes porque o queres levantar? Vim contigo há tanto e não sei quem tu és… Reparo às vezes nos pequenos gestos que fazes e vejo quão pouco sei de ti…

E. Eu próprio não sei quem eu sou… Meus gestos são entes estranhos quando reparo neles, e sombras incertas quando não reparo. São uma perpétua revelação a mim próprio. Sou tão exterior a conhecer-me como o mundo externo… Entre o meu querer erguer um braço e ele erguer-se vai um intervalo divino… Transponho, entre pensar e falar, um abismo sem fundo humano.

A. Eu sou simples como uma pedra no caminho ou uma rosa numa roseira.

E. És simples porque não te espelhas em ti. Uma pedra no caminho é (atónita) um mistério igual a Deus… Uma rosa numa roseira é tão compreensível como a Vida…

A. Olho-te e amo-te e não te possuo nunca. Floriram em (…) as rosas do meu jardim… Acompanho-te e perco-te sempre que olho para ti.

E. Eu próprio não me acompanho… como poderás tu acompanhar-me? Vejo meus pés andar como quem vê passar um cortejo humano nas distâncias e na noite… Reparo na minha sombra como numa face desconhecida que espreitou de fora à janela da minha moradia… Não compreendo nada… Não compreendo nada.

A. Mas há coisas que tu compreendes e que nunca me confessas. Falas-me dos teus amores e dos teus desejos mas eu sinto que guardas para ti, fechada na mão, uma jóia qualquer do teu sentimento. Porquê se eu te amo e se somos um só?

E. Porque nunca somos um só. Aquilo que eu não te digo, apesar de habitarmos juntos este palácio e juntos pensarmos neste jardim. Segredo-o a mim quando estou mais só e nem ergo a voz, para que me não ouça não sei quem que me não pode ouvir.

A. Sou a tua Alma e a mim-próprio não me contas tudo! Passou ontem uma brisa leve pelo jardim. Trouxe perfumes de outros jardins […]

1914?

 

DIÁLOGO NO JARDIM DO PALÁCIO

A. O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos. Nós somos portanto a mesma cousa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos — e o que interveio entre nossos pais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te… Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim… Para mim existo apenas de um lado… Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B. Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A. Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São — corpo e alma — qualquer cousa que eu não possuo. (Pausa) Ah! e quando nos espelhos que me reflectem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado — encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo [própria]. Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra cousa. Estranho-me por fora… Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo? (…) Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B. Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar…

A. Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Que cheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face — pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B. Mesmo o tocar nas cousas — que estranho. Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já — parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(Uma pausa)

A. Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só… Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas… Não, não é isto que eu te quero dizer… Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B. Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si-própria.

A. Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B. Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado… Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas… Assim… Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa… e pensa… Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem… Assim, amor… Não movas nem o corpo nem a alma.

(Uma pausa)

B. O que sentiste?

A. Primeiro nada… Foi um espanto de ti e de mim… Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais… Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror — ah, já não poder senti-lo! — é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como (…)

B. (numa voz muito apagada) Depois? Depois?

A. Depois desci… Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho… É como se se abrisse no escuro um vácuo. O súbito pavor de uma Porta… Assim no meu pensamento uno, vácuo abstracto, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstracto e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu… E eu desci, ao contrário do que se desce — ao contrário por dentro do ao contrário…

(Pausa)

B. Continua, continua…

A. Desci mais, sempre mais… e sempre nessa nova direcção. Mas… (ajuda-me a poder dizer isto!) (…)

A. Oh, que horror! que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto? (…) Sinto-o como se o visse — como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe (…)

B. Não quero, não quero… Tu não sabes o que senti!

A. Não ouso querer não o ouvir… Mas tenho medo…

2.ª O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor (…) Cada uma de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1.ª Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2.ª Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não desiludir-se é acostumar–se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1.ª Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

2.ª O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão… (…) Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A. Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B. Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar. Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A. Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B. Não, é porque sei quanto tu me não podes amar… Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna — o Homem e a Mulher… (…)

A. Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes… Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?…

B. Não podemos deixar de querer compreender (…) Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma… Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A. Agora podemos sonhar… Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B. Não… Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos… Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã… Olha, tolda-se o céu… Levanta-se o vento. Vai chover…

A. Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado… Tu…

B. Nada devia ser comigo é… Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A. Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivésses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor… Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B. Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos leva. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer — é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo (…)

A. Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares (…) Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

(Fica parada a dizer-lhe de vez em quando adeus com a mão, num pranto apagado e tímido).

1913

A MORTE DO PRÍNCIPE

[PRÍNCIPE].  Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer. Uns são frases que como se erguem do texto a determinar o sentido de todo um capítulo, ou de toda uma intenção, e a esses denominamos génios; outros são simples palavras, contendo uma frase em si mesmas, ou adjectivos definindo grandemente, destacadas aqui ou ali, mas sem dizer o que importa ao conjunto, e são esses os homens de talento; uns são as frases de pergunta e resposta, pelas quais se forma a vida do diálogo, e esses são os homens de acção; outros são frases que aliviam o diálogo, tornando-o lento para depois se sentir mais rápido, pontuações verbais do discurso, e esses são os homens de inteligência. A maioria são as frases feitas, quase iguais umas às outras, sem cor nem relevo, que servem todavia de ligar as intenções das metáforas, de estabelecer a continuidade do discurso, de permitir que os relevos tenham relevo, existindo, aparentemente, só para que esses possam existir. De resto, não somos nós feitos, como a frase, de palavras comuns (e estas de sílabas simples) de substância constante, diversamente misturada, da humanidade vulgar? Não é o nosso amor o amor de todos e o nosso choro as lágrimas em si mesmas? Mas cada um de nós ama e chora ele, que não outro: há um objectivo de dentro que o indefine (dissolve) e determina. Isto que te estou dizendo é sem dúvida delírio, porque não sei por que te o digo; mas, porque o digo sem saber, é também sem dúvida verdade. E as figuras de xadrez e as das cartas de jogar ou advinhar — seremos nós mais que elas onde a vida é vida? Quando eu era menino beijava-me nos espelhos: era um sinal antecipado de que nunca haveria de amar. Tinha por mim, em adivinha de negação, a ternura que me nunca haveria de ser dada. Por que não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Por que não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber, que não concebemos — um mistério de outro mundo inteiramente? Por que não seremos nós — homens, deuses, e mundo — sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E por que não será esse alguém que sonha ou pensa alguém que nem sonha nem pensa, súbdito ele mesmo do abismo e da ficção? Por que não será tudo outra-cousa, e cousa nenhuma, e o que não é a única cousa que existe? Em que parte estou que vejo isto como cousa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e a elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir? Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas. . . Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra cousa que estou a ver se vejo. Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?

P[RÍNCIPE]. Senta-te ali, aos pés da cama aonde eu quase que te não veja, e fala-me de cousas impossíveis… Vou morrer.

X. Não, meu Senhor…

P[RÍNCIPE]. Sim, vou… Já tudo começa a ter outro aspecto e a falar aos meus olhos numa outra voz… Parece que não sou eu que estou cansado de existir, mas as cousas que se cansam de eu as ver… Começo a morrer nas cousas… O que se apaga de mim começa a apagar-se no céu, nas árvores, no quarto, nos cortinados deste leito… Depois, pouco a pouco, ir-se-á apagando pelo meu corpo dentro até que fizer (sic) noite mesmo ao pé das janelas da minha alma.

X . Isso é belo de mais para que possais estar perto da morte…

P[RÍNCIPE]. É belo demais para que possa lembrar à vida… A curva dos montes, lá muito ao longe, torna-se, não mais indecisa mas mais indecisa de outra maneira… As árvores esbatem-se em sombras mas as folhas parecem–me extraordinariamente nítidas, evidentes de mais… A seda dos cortinados deste leito é uma outra espécie de seda… Afundo-me pouco a pouco…  Não te entristeças… Eu era real de mais para poder reinar algum dia… O único trono que mereço é a morte… Não dizes nada?

X . Senhor, não morrereis…

P[RÍNCIPE]. Sinto um ruído qualquer… Ah, como parece ser o arranjarem–me as vestes para a minha coroação no meu melhor Reino!… Sinto tinir espadas e isso lembra-me o ver cair neve… Lembras-te de antigamente?… Eu era muito pequeno, e quando o silêncio da neve descia sobre a terra, íamo-nos sentar para a lareira do castelo a falar nas cousas que nunca aconteceriam… Quantas princesas amei no futuro que nunca tive!… Lembras-te — não te lembras? — de como eu ficava cansado pelos combates em que nunca havia de entrar…

X. Para vós, Senhor, só havia na vida amanhã…

P[RÍNCIPE]. Talvez porque o meu corpo sabia que eu teria que morrer cedo… Mas não era amanhã nunca para mim, era sempre depois de amanhã… Eu sonhava sempre com um futuro que estava sempre um pouco ao lado do futuro que teria…

X. Às vezes eu contava histórias de fadas…

P[RÍNCIPE]. Sim… Eram todas diferentes… Na minha terra toda a gente é igual… Cansa tanto olhar para gente!… Nas festas do palácio havia sempre grupos que segredavam do meu silêncio… Eu via-lho nos olhos… Eu ficava a um canto, sempre não vendo aquilo para que olhava… Via sempre coisas diferentes daqueles entre quem eu estava… Nas salas do palácio, os meus olhos estavam nos bosques e a minha ânsia de estender os braços com a frescura das ervas e a maciez das pétalas e a paisagem das fontes… (…) Eu nunca fui feliz… Quando, nas ameias do meu novo castelo, eu olhar debruçado a confusão pequenina do mundo, eu serei feliz completamente… Talvez nem mesmo assim seja feliz… Mas [sei d’alma] que todo o meu encanto seria estar aonde não estou para de lá poder desejar onde estar…

X. Não serão todos assim?

P[RÍNCIPE] — Quem são todos? Para mim todos são só um… Eu nunca conheci ninguém. Distinguia as pessoas como quem distingue pedras… Nunca me deram a impressão de serem reais, especialmente quando falavam… Diziam todas as mesmas cousas, todas tinham amores e ódios, alegrias e dores, ânsias e cansaços… Se alguma me falava de qualquer cousa, eu, se fechava os olhos, tinha sempre diante de mim o Homem. Não, há em toda a gente uma só pessoa que não existe… Que vago… Que vago…

X. Vago, o quê, meu senhor?

P[RÍNCIPE]. Tudo… O horizonte está muito longe, muito longe… Ainda assim… não sei… não está… Sinto-o muito mais longe, mas não o vejo muito mais longe… Não sei bem o que vejo ou o que sinto… Talvez que as minhas sensações é que me sintam a mim… Parece-me que as cousas é que me sentem e que eu não existo senão porque as cousas me vêem e me sentem… Era bom se assim fosse… Não sei por que seria bom… Talvez por ser outra cousa… Como os reposteiros são estranhos…

X — Estranhos? estranhos, meu senhor?

P[RÍNCIPE]. Demasiadamente ali… Tenho vontade de ter medo de os estar vendo assim… Que estranho, que estranho tudo!… A janela é uma cousa muito outra! Parece saber que vêem através dela… Parece ver também… Parece que ela é que vê as cousas que nós vemos por ela… E a almofada, a almofada?

X. Que almofada, senhor? Essa…? Não a podeis ver…

P[RÍNCIPE]. Esta, esta… Não sei se a vejo… É enorme… Tem toda a extensão da vida!…. Mergulho nela como num mar de [sombras juntas] que ainda na minha carne saibam a sonhos… As minhas mãos, ao tocar nas roupas do meu leito, sentem-lhes cousas que antes não lhes poderiam sentir, significações seguras, frescuras, renúncias tímidas de linho… Ah, mas que estranho! mas que estranho! Não sei bem onde estás… As cousas em torno a mim são de tamanhos que não deviam ter… O meu leito é imenso como o repouso de um mendigo… As minhas mãos têm um fulgor a incertas… Como que vejo por dentro os perfis e os contornos das cousas… Não te sei dizer o que sinto… Não te sei dizer o que sinto… Todas as cousas tomam aspectos atentos… Todas as coisas se tornam heráldicas de mistério… Já não há cores… Já não há cores… Ah! o que é isto que as cores são agora?… O que é isto… Não são elas… São sonhos de outras cousas… São aproximações de cousas que vão a chegar à terra do espaço… Devo ter muito medo… Devo ter muito medo…

X. Aquietai-vos, Senhor, aquietai-vos. Heis-de viver… Este fim de dia é tão belo que não pode morrer alguém nele… Vede como os restos do sol são roxos e cinzentos no ocidente! Deveis viver, para viver… Espera-vos o amor e a lida…

P[RÍNCIPE]. Nunca agi certo.

X. Senhor, não penseis nisso…

P[RÍNCIPE]. Tratai-me antes de Senhora… Sou uma princesa de quem se esqueceram quando buscaram rainha… Ah que horror, que horror!

X. Que tendes, Senhor? que tendes?

P[RÍNCIPE]. Oh como tudo está mais estranho ainda! Não há já formas — oh meu Deus, oh meu Deus — não há já formas… Transbordaram as cousas umas para dentro das outras… No ar há só restos de linhas… Tudo é um fumo de lugares… Poeira, poeira… tudo em poeira… (…) Tudo é cinza de tudo… Tudo é cinza de tudo… Há em mim labirintos de não poder ver… A janela? onde está a janela… É uma coisa que brilha extraordinariamente mas em parte nenhuma do espaço… Tudo é cinzas de um fumo… (…) Onde estás tu? onde estás tu?

X. Aqui, Senhor, aqui!…

P[RÍNCIPE]. Não sei se te não vejo… Não sei o que é que vejo… Já não há cousa nenhuma… (Numa voz lenta e calma) O que é isto tudo? Não sei de que lado está a vida… O espaço está ao contrário… Não me sinto eu no meu mundo… Que estranho! que estranho! Onde é que está dando horas por dentro?… (…) Ah, vejo, vejo… Vejo agora! Vejo agora!

X. Que vedes, Senhor, que vedes? Acalmai, acalmai! Que vedes?

P[RÍNCIPE]. Vejo, vejo… Vejo através das cousas… As cousas escondiam… As cousas não eram senão um véu… Ergue-se o pano, ergue-se o pano do teatro… Tenho medo, tenho medo… Ah vejo, vejo enfim… Vejo enfim tudo… Olhai… Olhai… Agora vejo… Vejo as cousas reais, vejo as cousas que existem… Vede que surgem… (…) Vejo através das cousas como através dos meus olhos… As cidades sonhadas é que eram… reais.. As cousas são apenas a visão trémula delas reflectidas nas águas do meu olhar… Só o que nunca se tornou real é que existe realmente… O que acontece é o que Deus deita fora… O que parece não é real, é as costas das mãos de Deus, a Sombra dos seus gestos… As princesas que eu sonhei é que existem… As da terra são apenas as bonecas com que as outras brincam, vestindo-as, corpo e alma, a seu modo…

P[RÍNCIPE]. No além, floresço em corpo e para fora numa roseira com rosas brancas, e para dentro e em alma num outro universo, meu — numa outra paisagem minha. O corpo da minha vida real é uma roseira branca no Além; a alma da minha vida real é um universo interior no Além, um universo de dentro com montes com o perfil da minha ânsia, prados da extensão dos meus desejos.

P[RÍNCIPE]. Oh que horror, que inesperado horror! Que complexo! Que complexo! Sou a mesma roseira, mas estou vendo para dentro de mim… Tenho um reino, reino externo que sou eu além, tenho um universo meu — uma terra, uns céus… Vede… vede quem eu sou! Sinto-me roseira no escuro, mas olhando para dentro de mim vejo paisagens… Que paisagens amontoadas… Que contornos vagos! Que mistério estranho! Cada cousa é um universo para dentro… cada cousa no além é um universo perfeito olhando do seu corpo para a sua alma… Oh! Oh! já me não vejo. Sinto-me roseira toda perfumada… o corpo da minha realidade no além é uma roseira, que sinto mas não vejo… Os meus olhos esvaíram-se para a alma… Floriram para dentro as melhores flores do meu ser do além!…

X. Senhor! Senhor! Senhor! Já nem sequer me amas, já nem sequer me amas!

P[RÍNCIPE]. Que paisagem é esta que é uma roseira branca nas noites do além! Que (…) montes! que linha estranha que têm estes montes! Que vales tão aluindo-se.

P[RÍNCIPE]. Qual foi aquela batalha em que eu ia na frente dos meus corcéis, de pluma branca ondeando ao vento.

X. Não houve essa batalha, senhor. Não entraste nunca em combate…

P[RÍNCIPE]. Então por que me recordo tão bem disso? Eu ia indo e, não sei como, via-me longe. Eu era belo como não pode ser. A batalha durou muito tempo em que não se via nada. Ah, então essa foi uma derrota, uma derrota… Pobre de mim, que até os meus exércitos na guerra não podem vencer nem regressar…

P[RÍNCIPE]. É tudo as paredes de um grande poço a que não vejo o fundo… Que fundo, oh que fundo! De que lado é que é o negro? Aonde é por cima e por baixo? onde é que está o lugar onde eu estou? Ah, não sei onde está o espaço… Está tudo errado, tudo vazio de dentro para fora… Não tenho esquerda nem direita… Nem há lado nem posição… Ah, o que é isto tudo, o que é isto tudo? Tenho medo (…) Fecha-me na vida… Não me deixes sair da vida… Isto aqui é tão estranho!

P[RÍNCIPE]. O silêncio das cousas faz-me gestos que me apavoram. Onde estão as cousas… Já não há cousas… É tudo negro, tudo negro… Não, Não… tudo como se fosse negro. São gente… Ah, vede, vede… são figuras que passam… Não há cousas, há gente. Sobem dos abismos como exalações… Já não há cima nem baixo nas cousas. Tudo é já Diverso — mesmo o modo de se ser diverso.

X. Vede, senhor, vede, estais melhor… Já vedes cousas e antes víeis só sonhos.

P[RÍNCIPE]. Não, não… Passei atrás de Deus para o outro lado da ilusão… (…) Agora ouço-te: és uma figura num sonho… Amo-te com compaixão porque te julgas real… A tua alma e o teu corpo são uma só coisa, mal sabes tu o que eles te encobrem…

X. Acalmai-vos, senhor… Acostai-vos no leito… Tudo isso é sonho… Amanhã estareis melhor.

P[RÍNCIPE]. (numa voz calma e lenta) Ouço um ruído de fonte,… Que grande noite! Que grande paz cabe no haver esta noite… É outra espécie de noite… É a própria paz… Mas que lugar tão estranho… Todo fresco de tanto abismo… Por onde é que eu vou andando?…

X. Não andais, senhor…

P[RÍNCIPE]. Ouvi um ruído qualquer… Que grande paisagem de abismos… (…) No fundo de um desses abismos deve estar (…) Que calma espera nos contornos invisíveis dos rochedos? Que sossego se abisma nas profundezas!… Já estou esquecido de novo… Para onde vamos nós? Não ouço caminhar… É como se estivesse a dormir enfim… Cada passo é sereno (…), cada passo é calmo como ter já chegado… Como estou calmo. Vai raiar a aurora…

X. Anoitece, meu senhor, anoitece…

P[RÍNCIPE]. Vede, vede… Os exércitos que eu comandei… os cavaleiros do meu séquito… vencedores ao longe… vencedores ao longe… todos eles sou eu… Vede, vede… chegam ao castelo… Que grande castelo todo do poente! Chegam ao castelo… Ah, o que é isto? Como tudo se alarga! Como tudo se aviva… Ah! o castelo está em chamas, está em chamas! Assim é que ele devia estar… assim… assim… Ondeia em chamas, alastra-se no fumo… é maior ardendo, é mais antigo ardendo… é mais meu ardendo… Cresce tudo, cresce tudo… Que deslumbramento… Há fogo nas eiras… Há fogo nas eiras… Os pinheirais estão em chama… O céu é um mar imenso em marés furiosas de fogo… Tudo transborda lume… Queima-se em mim todo o universo… Arde todo ali fora.. no lume cresceu tudo para dentro… Tudo floresceu em chamas… Vejo de mais… Há cousas a mais no espaço… Há cousas de mais em cada cousa… Há muito em tudo… Está tudo errado, pra mais… Já vai mudar tudo… O fogo é já de outra cor… Ah… tudo é negro… tudo é negro… tudo é negro outra vez…  Há ruídos de grandes quedas; há choques de exércitos na noite… Ninguém sabe se vence… Tropéis de cavalos no longe… Onde está o mundo? Onde está o mundo? onde há cousas? onde há cousas? onde há cousas?

X. Meu senhor, meu senhor…

P[RÍNCIPE]. Já não sei nada… (…) Fala-me… Fala-me… Fala-me… De que lado da minha alma é que soa a tua voz?

s. d.

SALOMÉ

[SALOMÉ] – A minha beleza faz os homens sonâmbulos, e o som (encanto) da minha voz distrai-os de sonhar. As suas preferidas odeiam-me sem saber se existo, porque entre as palavras vagas dos seus discursos amorosos, a minha imagem embarga as frases e elas sentem-me passar, como um canto de sereia, nos esquecimentos da voz, e nos abrandamentos dos braços e das mãos, que cingem ou que apertam. Sou o perfume que, uma vez sonhado, lhes faz aura à imaginação, e não poderão ter esposa, nem noiva, nem até irmã a que acarinhem, porque se lembram de que eu sou a princesa que um dia lhes foi toda a vida.

Os meus passos vão leves sobre as relvas, como se fossem memórias. Nos gestos que faço com os braços há um sorriso da minha boca triste. Os meus olhos não conhecem uma promessa certa, e quando são baixos e só os cílios vivem, os corações anseiam com uma grande tortura.

Dizem que sou a maravilha, mas eu não sei quem sou. Habita em mim um fluido de desastres que cai sobre as épocas futuras como uma chuva que é nevoeiro.

Morreriam milhares só por beijar minhas mãos. Milhares deixariam seus lares só por ouvir a própria voz chamar-me a mim princesa. Pelo meu desprezo visível trocariam muitos todos os amores que lhes foram dados, e até aqueles que desejariam. Sou fatal como as noites e os outonos, e no meu coração há já uma saudade de todos quantos matarei.

Os escravos rastejam com os olhos quando mal me podem olhar. Passo entre as alas dos soldados e sinto-os que tremem como folhas ao vento. Levarão saudades desse momento como de uma grande maldição, e acordarão nas grandes noites de estio, quando o suor entra na alma, pávidos da memória sinistra que vive do meu perfil entrevisto, dos meus olhos desviados, do recorte das minhas sobrancelhas muito negras contra a pele morena muito branca da minha fronte coroada de sombras.

As escravas invejam-me com amor, e cada uma sonha, a sós com o leito sem outro peito, em como haveriam seus olhos de fazer amar os cães, e seus gestos de fazer relinchar os cavalos, nas grandes noites em que a virgindade se sente nas entranhas.

Os gatos roçam-se contra as minhas pernas e sentem-se tigres até ao sexo. As aves cantantes calam-se quando passo, e as rosas altas roçam pela minha face porque eu tenho o privilégio dos caminhos.

[SALOMÉ] – Trazei, disse, vossos sonhos para este terraço de onde se vê o mar. Quero sonhar convosco em voz alta, e que a minha voz teça com as vossas o casulo de uma história em que nos fechemos da vida. Para aqui são as terras do reino do que me é como pai, para ali o mar e as terras do outro rei: ambos têm gente a quem governam, em ambas amam os que amam e são forasteiros os que passam ( …)

Contai, sim, o que vos conto que vos contar-vos. Sonharmos, sonharemos o mesmo sonho. Se o sonharmos todas, ele será mais belo do que é, e terá uma vida longínqua e trémula como a candeia das imagens que vivem no fim do mundo.

Eu, filha de Herode, não tenho dia em que não queira a noite nem noite que não anseie pelo dia (…) A minha vida é uma planície a que se segue outra planície. Não raia sol que me traga a alegria do outro, nem lua que me lembre mais os sonhos que não sei sonhar.

[SALOMÉ] – Sinto-me menos imortal que as cousas que sonho. Quando o sol nasce ou morre, a minha sombra é infinita (…) Projecto-me quando sonho sobre todas as épocas. Quando sonho sinto que não morro. É quando acordo, e escuto com o meu sangue, que eu ouço passar a vida.

S[ALOMÉ] – Minha vida tem um cansaço de mais cousas do que a minha vida. Não sei mais que sonhar, mas hoje, que me pesa tanto o não saber mais que sonhar, e tenho sem querer a necessidade do sonho, quero que sonheis comigo. Quero que sonhemos juntas. Se uns vivem juntos, porque não sonharão juntos outros? Há alguma diferença entre o sonho e a vida?

A – Mas como, senhora, sonharemos juntas? Tenho sono, e gostaria de sonhar; mas não quero dormir, porque os sonhos, quando se dorme, são de outra alma, e cruzam-se com os que desejaríamos ter, como os peregrinos nas encruzilhadas.

S[ALOMÉ] – Eu farei para mim um sonho, e esse sonho será uma história. Irei contando alto essa história, e vós ouvireis e sonhá-la-eis comigo. Uma ou outra de vós, quando a história lhe for ensopando a alma, me irá dizendo o que vê na alma dessa história, e que eu me esquecesse de contar. Será como um canto em que cantemos juntas num sentido, e cada uma por sua vez na voz. Dizei-me que pode ser assim, para que eu possa sonhar a história que há-de ser.

A2 – Se a história for bela, senhora, será pena que fosse apenas sonho; se não for bela, será pena que se houvesse contado.

S[ALOMÉ] – Se a contarmos bem e for bela, e por isso a sonharmos bem, será mais que um sonho, nalgurn lugar, algum momento, ela terá de ser, porque as coisas que acontecem não são senão como são narradas depois. O que aconteceu ninguém o sabe, porque ninguém sabe o que está acontecendo; os olhos têm a venda de ver e os ouvidos estão tapados com o ouvir. Os livros grandes que meu Pai lê contam coisas maravilhosas do passado. Essas coisas são narradas, porém talvez nunca se dessem. Mas as coisas deram-se porque foram narradas. Que temos nós com o que foi? O que foi é morto e como se não fora nunca. O que é do que foi é verdadeiramente hoje foi antes. O mais é pensar de loucos ou de crianças, que querem a verdade ou a lua nas grandes noites de verão, como esta em que a alma é ampla e triste.

A – Assim seja, senhora, e sonhemos. Começai vós que quereis começar, e tendes a voz das fontes escondidas, e os gestos, quando acaso os abris, das palmeiras que mostram que há vento, quando não há vento que toque as pálpebras nem brisa que roce na face a distracção dos cabelos.

S[ALOMÉ] – (depois de uma breve pausa) Suponde que… Não, supor é perder… Não, não é assim que se sonha… Espera, que quero ver… (Outra pausa) Havia, no deserto para além do deserto, entre a parte dos desertos que é rochedos, e a solidão é mais dura do que nas areias e a alma mais triste que ao pé das palmeiras, um homem que queria um deus, porque nao havia deus dos homens que habitassem naqueles desertos nem naquela alma. Queria um deus com mais sede que a da água, e mais fome que a dos frutos que são como água e são doçura, e para os quais as crianças estendem o olhar e a mão. Esse homem chamava-se João, porque no meu sonho se chama João. É um nome de entre os hebreus, mas não há felizmente profeta ou rabino de entre eles que ainda usasse deles. Esse homem clamava-a porque a queria e não porque ela houvesse de ser. Mas ele clamava tanto que sem dúvida o ouviria esse deus que ele estava criando. E o deus viria em sua hora, porque para quem sonha não há hora, nem se desencontra a alma com o seu destino.

S[ALOMÉ] – Quer, com todo o meu sonho, que este sonho seja verdadeiro. Quero que fique verdade no futuro, como outros sonhos são verdades no passado. Quero que homens morram, que povos sofram, que multidões rujam ou tremam, porque eu tive este sonho. Quero que o profeta que imaginei crie um deus e uma nova maneira de deuses, e outras coisas, e outros sentimentos, e outra coisa que não seja a vida. Quero tanto sonho que ninguém o possa realizar. Quero ser a rainha do futuro que nunca haja, a irmã dos deuses que sejam amaldiçoados, a mãe virgem e estéril dos deuses que nunca serão.

S[ALOMÉ] – O que é esse grito na noite, lá em baixo?

A – Trouxeram ao tetrarca a cabeça de um bandido.

S[ALOMÉ] – Tragam-me a cabeça de um bandido. Tragam-ma numa salva de ouro.

S[ALOMÉ] – De quem é essa cabeça?

X – De um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não quero que seja de um bandido que matava nas aldeias. Quero que seja de um santo que criasse deuses.

X – Era de um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Aproxima-se de mim a salva (…). Vede como as pálpebras podem ser de um sonhador, e a boca pode ser de um pecador arrependido ou de um asceta que nunca pecou. As faces têm rugas — podem ser de vigília ou de ódio, mas isso importa pouco, porque estamos criando a história. Afasta um pouco mais a cabeça. Quero vê-la, mas não quero vê-la bem. Afasta mais ainda. Aí, onde está, a luz do luar dá-lhe como um malefício. Quantos luares mais lhe não darão no sonho que outros terão do meu! Leva-a mais para longe. Estou cansada. Sonhei demais. Que homem era esse?

X – Era um bandido que matava nas aldeias.

S[ALOMÉ] – Não te disse que essa cabeça era a de um santo que fazia deuses? Porque me dizes que era de um bandido que matava nas aldeias? Chamai o capitão da guarda — o que é louro e triste.

(…) A princesa chama o capitão de guarda. 
Um murmúrio vago. O capitão aparece.

CAP – Chamaste-me, senhora?

S[ALOMÉ] – Chamei. Está ali um homem com uma salva.

CAP – Senhora, vejo.

S[ALOMÉ] – Na salva está a cabeça de um santo que criava deuses. Reparai no homem que tem a salva na mão.

CAP. Senhora, reparo.

S[ALOMÉ] – Esse homem desmentiu-me. Quero que mateis esse homem.

CAP – Senhora, que mate esse homem?

S[ALOMÉ] – Tendes a espada e a minha ordem. Que mais razão podeis querer?

(O capitão desembainha a espada e mata o servo. Este cai com a salva. A salva e a cabeça, separadas, fazem estrondo alto e baixo, no chão de pedra. Entra o Tetrarca.)

H[ERODES] – Que novo sonho é este, ou que novo capricho? Que malícia fez que se trouxesse aqui esta cabeça que pedi me fosse levada? Quem a desviou dos meus olhos para os teus?

S[ALOMÉ] – É a cabeça de um bandido que matava nas aldeias.

H[ERODES] – Não é. Esta é a cabeça de um santo que estava a criar deuses pelos desertos. Mandei-o matar e quis que me trouxessem a sua cabeça. Porque foi que a pediste?

S[ALOMÉ] – Porque foi que a pedi? Porque foi que a pedi? Não sei. Não sei. Que foi isso que disseste, senhor que me tira a alma toda do coração. Não digais que me disseste a verdade porque isso é demais para o meu sonho. Ah, que talvez o sonho não crie mas veja, e não faça senão o que adivinha. Aquela cabeça era de um santo que andava nos desertos?

H[ERODES] – Que vinho de luar te embebedou, que falas como os mortos entre os vivos? Aquela cabeça é de um santo que cantava nos desertos a memória dos deuses futuros.

S[ALOMÉ] – A cabeça? Deixem-me vê-la de perto. (Ajoelha ao pé dela) (Toma-a nas mãos) Faz medo e nojo, como os deuses. É a cabeça de um monstro porque é a de um morto. Tetrarca, quem era este homem?

H[ERODES] – Era um homem que anunciava nos desertos, cantando e gritando, a vinda do fim das coisas e de um deus que teria piedade. Gritava entre a rochas solitárias que os deuses antigos eram como os homens quando vivem, mas o deus novo seria como os homens quando morrem, a imagem da tristeza e da verdade, Não lhe vi ainda a cabeça. Erguei-ma na salva para que eu a veja.

(O capitão da guarda olha em redor faça. Abaixa-se, toma a salva, coloca nela a cabeça e ergue-a ante a vista do Tetrarca. O Tetrarca inclina a cabeça para a frente e fita a cabeça com insistência.)

H[ERODES] – É a cara de um homem que viveu entre os desertos e esperava novos deuses ao pé de rochedos. Parece que chorou muito: as faces têm sulcos como os que as águas fazem nas rochas. É terrível, mas por detrás das pálpebras cerradas sinto com a própria vista que os olhos são tristes… Quem matou aquele escravo?

CAP – Fui eu.

H[ERODES] – Porque o mataste?

CAP – Mandou a princesa que o matasse.

H[ERODES] – Porque foi que mandaste matar?

S[ALOMÉ] – Não sei. Não sei nada. Sucede qualquer coisa de tão terrível que não sei como falar. Mandei-o matar porque ele disse que aquela cabeça era de um santo que criava deuses nos desertos.

H[ERODES] – Mas era de um santo que criava deuses nos desertos.

S[ALOMÉ] – Não era: era de um bandido que matava nas aldeias. Deponde a salva no chão, retirai-vos. Tenho sono. Pai, tenho sono. (Para as aias) Retirai-vos vós também. Pai, quero dormir. Deixai a salva aí no chão, com a cabeça. Pai, ide-vos também daqui.

S[ALOMÉ] – Eu bem sabia. Eu bem sabia. Não se pode sonhar sem Deus saber. A minha mentira era verdade. Era certo que nos desertos havia um santo que chamava por um deus novo, um deus triste como as rochas e sozinho como as grandes planuras. Eu bem sabia que alguém haveria de querer um deus que conhece os sonhos e tem pena do que não têm nada.

Vou fazer como se estivesse num festim. Vou bailar à roda da tua cabeça até cair sem vida. Vou dançar no funeral das coisas que morreram com a tua vida. Vê, vou fazer um bailado ao luar, para dizer tudo.

s.d.

Poesia ortónima

1909-1935

Textos

            Poesia ortónima até 1920
            Poesia ortónima 1921-1930
            Poesia ortónima 1931-1935

 

            Abdicação 

   Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho. Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

   Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

   Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

    Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

1913     

     

              CHUVA OBLÍQUA

                                         I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…
Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma…

                                     II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro…
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no facto de haver coro…
A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…
E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa…

 

                                     III

A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Cheops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…
Ouço a Esfinge rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…
Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!…
                                 

                                      IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!…
As paredes estão na Andaluzia…
Há danças sensuais no brilho fixo da luz…
De repente todo o espaço pára…
Pára, escorrega, desembrulha-se…,
E num canto do tecto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados…

                                      V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel…
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim…
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal…
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois…
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol…
De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar…
Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos…
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje…

                              VI            https://youtu.be/BX14TEVc76k

O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe…
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo…

   Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…

   Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)

   Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal… E a música atira com bolas
À minha infância… E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos …

   Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo…
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância…

   E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo…

1913

 

             Passos da Cruz 

                            VI

    Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu atual recorte humano e vil.

   Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil…

   Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi…
Eu próprio sou aquilo que perdi…

   E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri…

                         

                           XII

   Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha…

   “Em longes terras hás de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão…
Seu vulto perde-se na escuridão…
Só sua sombra ante meus pés caminha…

   Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora –

   Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir…

1916.

Poesia ortónima 1921-1930

                         NATAL

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.

1922

Ela canta, pobre ceifeira,
julgando-se feliz talvez;
canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
de alegre e anônima viuvez,

ondula como um canto de ave
no ar limpo como um limiar,
e há curvas no enredo suave
do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
na sua voz há o campo e a lida,
e canta como se tivesse
mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
e a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

pesa tanto e a vida é tão breve!
entrai por mim dentro! Tornai
minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!

1924

Poesia ortónima 1931-1935

      Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

1931

 

       EROS E PSIQUE

… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

Conta a lenda que dormia
uma Princesa encantada
a quem só despertaria
um Infante, que viria
de além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
se espera, dormindo espera.
sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
— ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e, vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a Princesa que dormia.

1933?

 

Poesias de Álvaro Campos

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

*****                                     

 

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

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