Vinte degraus e outros contos
2014
Vinte degraus
Eram precisos vinte metros para matar. Dando tempo à pessoa para ter a sua dança, como o enforcado. Para perder os olhos na descida, não vendo o matador que se debruça.
A mulher repetia e repetia, com a espuma nos lábios. A secura.
Ninguém a queria ouvir. Ela falava sobre uma ponte mentirosa, a sua ponte que convidava para o suicídio e deixava o trabalho inacabado. Ela atirara-se, a mulher, caíra sobre as pedras agudas. Depois ficara horas a gritar. “Não tinha vinte metros, a maldita”, dizia. E já dizia aquilo a rir. O amor aconselhara-a a morrer e afinal as coisas do amor não são mais importantes que uma cobra. Assustam e, a seguir, desaparecem.
Os ossos tinham-se colado novamente, os grandes e os pequenos, tudo em ordem. Excepto no pé esquerdo que ficara virado para trás. O buraco na testa de onde o sangue corria tanto que lhe entrava pela boca, como se ele próprio lamentasse o desperdício, esse gerara a sua substância muito particular. Nem pele nem carne. Um remoinho branco e gorduroso, como uma flor de cera a encimar a escuridão da face.
Ela nascera para lá dos montes, onde as mulheres começavam a ser feias. As do lado do mar sorviam toda a luz que Deus tornara disponível, recobriam os olhos e a cabeça com o azul e o ouro dessa luz. A mulher tinha o nome de Rosa e agarrava-se à beleza do nome, tão amável, tão feito de veludos e cetim. Ela ia saltitando pelo caminho, castanha entre o castanho da paisagem, com a enxada ao ombro. Cultivava como podia as terras da avó. Saltitava com as botas distorcidas, com as meias calçadas, ao calor. Era um grande coelho, pardo e só. Depois, passou o homem na carrinha.
Oh, era um homem que brilhava. E todos confundiram o brilho com bondade. Mesmo a avó de Rosa. Com as unhas, tirava som do maço de notas que ele lhe dera. E as rugas da alegria cavalgavam as rugas da tristeza sem lhe modificarem muito o rosto. Na verdade, sonhara com dinheiro a vida inteira, não sonhara com a neta. Sabiam bem o que valiam uma e outro.
A bondade do homem que brilhava, sendo ilusória, ainda assim permaneceu na sua superfície muito tempo. Ele usava pulseiras e correntes e brilhantina e sapatos de verniz. Rosa espreitava pela janela da carrinha e absorvia aquela velocidade, o cérebro acendia-se e apagava-se a ponto de, no fim do dia, ter sofrido uma completa modificação. Quando entrou no seu quarto de dormir numa pensão de estrada, preparou-se para que o homem a despisse e usasse. Mas o homem deitou-se ao lado dela, com o seu tilintar e o seu cheiro, e adormeceu imediatamente. Era um homem bondoso, pensou Rosa. Levava-a para criada de servir. De manhã perguntou-lhe o nome. Havia bolor na geleia do pequeño-almoço. Chama-me o que quiseres, chama-me pai, disse ele. Não tinha idade para isso.
Quando chegaram à cidade, Rosa encolheu-se pela primeira vez. Não por temer as intenções do pai mas porque não se divisava um horizonte. Tentava ver algum princípio e algum fim mas nem se apercebera da entrada. Distraíra-se com a súbita paragem de muitos carros num vazio de mato e canas, com o largo alcatrão como um rio morto. No momento seguinte, já não tinha distância alguma onde deitar a vista. Começou a tremer. Depois viraram para dentro de um pátio. Isto é Lisboa, adiantou o pai. E pegou-lhe no saco e apeou-a. Não há vento em Lisboa, pensou Rosa. Nada daquilo que respeitasse ao ar podia passar entre os altos prédios. Então, olhou para cima, para o céu. Mas desequilibrou-se e desistiu. O pai puxou-a com doçura pelo braço.
Atingiu-a o vapor dos cozinhados ainda antes de a porta abrir passagem. Aquele vapor surpreendia-lhe a garganta, deu-lhe vontade de pigarrear. “Eram lá esses truques africanos, nunca me consegui habituar”, comentava a mulher. E ria. Ria. Com esse riso, conquistara todos os clientes da casa. E as colegas. A surda-muda, a cabeluda, a anã. E outras que não se demoravam muito tempo, que revelavam qualidades de ambição e que pediam à porteira que lhes fosse a uma cave da Baixa comprar pós. Sabiam pôr os homens a chorar, copiavam as listas lamentosas dos programas dos bispos evangélicos. Então eles choravam e bebiam, depois voltavam para as levar com eles. As zarolhas usavam esse truque com uma taxa de êxito notável. Não se diria que casavam ricas mas, pelo menos, casavam com alguém. Ganhavam um armário só para elas. Curiosamente, o pai não se zangava. Mantinha mesmo relações cordiais com as mulheres que, para todos os efeitos, tinham traído a sua confiança. Muitas vezes pedia-lhes conselhos. A Rosa, não. E, no entanto, Rosa nunca dera bebida a ninguém.
Ela contava: “Os quartos eram noutro andar. Um corrupio no elevador.” Mas as vizinhas não diziam nada. Nem sequer os maridos das vizinhas. Pois já ninguém se achava muito certo sobre que espécie de comportamentos devia ou não devia tolerar-se.
“Éramos todas aleijadas, sabe?”, dizia Rosa. Mas falava para si própria. “As aleijadas fazem boas fêmeas. O pai ganhava um dinheirão com a gente. Tanto que se mudou para um bairro novo.”
*
Rosa gostara muito dessa vida. As colegas tentavam compensar a falta de harmonia dos sus corpos recorrendo a formatos de deferência que se pareciam com educação. Quando se impunha uma disputa, elas dançavam, evoluíam nos seus membros monstruosos como fazem as aves, ao lutar. Mas eram, normalmente, generosas. E mediam as forças com cuidado. Poupavam tudo, a energia e os cêntimos. Porque dificilmente acreditavam no seu sucesso como coisas sexuais. E os adeuses delas aos clientes impressionavam pela sinceridade, assemelhavam-se aos adeuses do namoro, tão penetrados de melancolia. E, para além do gosto peculiar que os levava a buscar imperfeições, os homens eram como que chamados pelo ambiente de delicadeza em que até mesmo os altos palavrões levavam dentro algum murmúrio maternal.
Rosa era a menos meiga delas todas porque não precisava, tinha as suas competências maiores. “Tu és o sal e a pimenta”, disse o pai. As companheiras estavam gratas porque Rosa aceitava cenários complicados e as dispensava, assim, de os aceitar. Conheciam apenas a cidade. Se chegavam das vilas, continuavam a conhecer apenas a cidade, isto é, apenas casas e empedrado. Repugnavam-lhes certas porcarias. Rosa entrara descalça nos currais, deitara a mão ao interior das cabras para lhes arrancar os filhos mortos. Não se importava com a viscosidade, com a decomposição ou a acidez. E a pele, tão dura, resistia bem a beliscões e a sevícias mais grosseiras. “Tu és o sal”, dizia o pai. “E a pimenta.” Mas o que havia em Rosa era a tendência para se aborrecer rapidamente. Com as variantes, não se aborrecia.
Os negócios do pai corriam bem. Na verdade, corriam bem de mais. Atraíram algumas atenções. Foi convidado para se tornar sócio do seu próprio bordel. Com o insulto, quase que se sentiu adoecer. A anã Lúcia começou a chorar muito, ainda antes de ele falar do ultimato. Queixava-se das brutas injustiças que esperavam pelos pobres nesta terra. Estava a um passo de tornar-se comunista mas deslocou as atenções para a Bíblia. Logo a seguir, o prédio incendiou-se.
Era um prédio em que havia vigilância mas que tinha, no entanto, pontos fracos. Tudo necessitava de equilíbrio e um excesso de olhar prejudicava. Mas, pelas fendas do olhar a menos, entrou o fogo. E, se ninguém morreu, morreu ali o ânimo do pai. Ninguêm o conseguia consolar.
Viviam na pensão, como estrangeiros fugidos de uma guerra. Todas pensavam que era apenas uma crise. O orgulho do pai falava, às vezes, e ele ansiava pela revolução. “Liberdade onde e para quem?”, exclamava. “Estamos num filme americano, é isso.” Sentava-se na cama, rodeado das suas protegidas, uma anã, uma com ferida exposta numa perna, outra com barbatanas entre os dedos e Rosa, a coxa. Ele tinha envelhecido. Regressava sem os fios de ouro, sem pulseira, sem relógio. E, em lugar de mostrar-se aliviado pela falta de peso, recurvava. Não perdera somente os seus objectos. Perdera os clientes e os amigos. Estava num filme americano e cada esquina revelava uma sombra de assassino. Iam matá-lo e apoderar-se das meninas. O pai distribuiu até ao último cêntimo que guardava pelas quatro, disse: “Há sempre um duelo” e não voltou.
Rosa e a das barbatanas instalaram-se num quarto para pagarem renda a meias. Mas a das barbatanas estava muito longe de ser uma mulher tranquila. Rosa tão-pouco se sentia satisfeita. A senhoria, que sofria de remorsos, incómoda e prestável como sempre sucede nesse género de pessoas, arranjou-lhe papéis para a caridade. “Não, não é isso que se chama”, esclarecia. Mas o nome real era esquisito e, de qualquer maneira, disse Rosa, o mundo não mudava tanto assim. “É uma obrigação do Estado agora”, adiantou a senhoria. E a importância da sua diligência diminuiu. “O Estado até nos fica agradecido”, disse ela ainda, para remediar.
II
“Pagam aos pobres para gostarem de ser pobres”, dizia Rosa, essa mulher. E ria. Passava as tardes na entrada para o Metro. Estando num filme americano, não podia almejar as estações mais concorridas. Não eram livres, os pedintes, de escolher. Tinham as suas organizações. A grande mão pegava em cada um, depositava-o no seu sítio, recolhia-o. Alguns cantavam ou choravam, os dotados. A percentagem compensava mais. Quem quisesse ganhar a sua vida, olhava bem e via um mapa militar. Uma rede de guerra, bem estendida. Os campos ocupados, porventura os seus mortos e feridos. Assuntos muito territoriais. Ficavam só uns lugares fora de controlo, respiradouros para mendigos leves pelos quais todos passavam sem olhar. Numa dessas escadas, estava Rosa. Quatro degraus abaixo, estava o cego.
O cego precisava de dinheiro, a mulher não. Mas queria distrair-se. A colega de cama, a que exibia barbatanas rosadas, saíra um dia e não voltara mais. Passava muito mal com o tempo seco e tomava os seus duches clandestinos em quantidade não prevista no aluguer. A senhoria era bastante original, uma pessoa magra com tormentos. Mas aquele gasto de água exasperava-a. Levava-a de regresso à sua classe. Vigiava, o que é normal nas senhorias. Insultava baixinho a sua hóspede, farejava-lhe o rasto. E acabou por fechar tudo à chave. Isso obrigava-as a pedirem para ir à sanita. A rapariga com as barbatanas ia perdendo a gentileza do bordel. Abanava com as mãos, formando leque. E batia com as portas, disparava obscenidades pelo corredor. Virou-se finalmente contra Rosa. “Nem para te matares serves!”, acusava. Deixava a crueldade crescer nela e a certa altura não cabia já no quarto. A raiva transformava-a num gigante. Expulsava a amiga a pontapés, da cama. “Endoideceu com o calor”, explicava Rosa. A senhoria futurava uma catástrofe, algo de que seria responsável e que acrescentaria outro fantasma às suas noites tão inquietas já.
De facto, a rapariga não voltou, certa manhã de Julho. Rosa andava a embater nos móveis com o pé torto, numa euforia de conquistador. A senhoria absteve-se de arranjar outra pessoa para partilhar a cama. Ao mesmo tempo que se ouvia respirar a largos haustos, como em campo aberto, Rosa sentiu perfeitamente o tédio entrar, silencioso, pela janela.
“Preciso de ar”, explicou à senhoria. E foi mostrar a perna para o Metro. Não porque precisasse de dinheiro. Comia sopas de café. Não era velha, mas adoptava os alimentos da velhice que lhe bastavam, com as colheres de açúcar. A esmola do governo não faltava e poupava-a a mais apreensões. Mas a tranquilidade aborrecia-a. Por isso colorira tão bem o seu trabalho, com desempenho que as colegas nem sonhavam. Por isso olhava para o tecto, a suspirar. Depois pegou na lata das bolachas que já estava vazia e foi para o Metro. Punha o pé e a lata em evidência.
Quatro degraus abaixo, o cego erguia o pequeño focinho para captar toda a informação que conseguisse. Pois era realmente um cego a sério que tinha de prestar contas à mãe. O calor e o frio atravessavam-no, perfurando-lhe a roupa como balas. E ele erguia a sua voz potente, uma voz indignada que seguia atrás dos transeuntes, escorraçando-os. As crianças gritavam e ninguém parava para tirar uma moeda. “É no que dá manter a independência”, dizia o cego. Ao pressentir uma rival, aumentou o seu tom injurioso. Rosa falava sobre a ponte. Os passageiros, para fugirem do cego, não passavam ao lado dela com o ritmo devido. Aceleravam mais e murmuravam contra a chuva e o sol. Rosa não queria que lhe dessem nada. Queria somente um pouco de demora. Atirava com a história e ela caía sobre as arestas dos degraus, magoada. Abandonada como fora a sua dona.
“Se teimas em sair, leva a bengala”, mandou a senhoria. Não desistia nunca de intervir. O cego interessou-se pelo som novo. O toque da bengala no cimento. “Qual é o seu padecimento?”, perguntou. Queria dizer: Qual é o seu pretexto? Pensou: Que utilidade tem para mim?
“Veja quem me dá tampas de garrafa”, pediu. “Quando ele voltar a passar, diga”.
“E que ganho eu em troca?”
“O que é que quer?”
“Quero que você ouça o que eu contar”, propôs a mulher, Rosa.
E então, falava. Falava longamente sobre a ponte. Sobre as pontes mais baixas, carinhosas, pontes de musgo que embalavam os passantes. E sobre as outras, tão acima que avisavam os próprios aviões da sua altura. Mas na ponte de Rosa não havia qualquer linguagem, só maldade absoluta. Ainda assim, ficava agradecida. “As pontes são passagens do diabo. Servem para baptizar os filhos dele”, elucidou o cego.
“Não esteja a desculpá-lo.”
“A quem?”
“A Deus.”
Deus escolhia os acidentes. E as doenças. Vendia o fósforo e a gasolina que tinham destruído o seu bordel.
“É porque Deus não gosta de vergonhas. Nem de aleijados.”, considerou o cego.
“Nem de si.”
“Nem de mim.”
E riam. Riam.
Dias depois, o cego perguntou: “Como é que Ele faz a escolha?” Adquirira um certo jeito para filosofar. “Sim, como é que Deus escolhe quem aleija?”
“Escolhe só porque se sente enfastiado”, respondeu Rosa. Estava iluminada pois finalmente percebia Deus: tentava tudo para se entreter. “Sabe você quantos degraus tem esta escada? Tem mais ou menos vinte. Eu já contei. Para passar o tempo. Assim faz Deus. Já contou tudo o que há no mundo.”
“E chateado. E, se calhar, nem dorme”, disse o cego.
«Talvez de quando em quando se espreguice e estenda uma bengala, de maneira que alguém tropece e caia até lá abaixo.”
“Alguém que tenha dado esmola falsa”, adiantou o cego, vingativo.
Oh, não, nem sequer isso, pensou Rosa. Deus não precisa de razões para atirar alguém por estes vinte degraus duros. É por isso que é Deus.
Então o cego ouviu os gritos e o estoirar de um crânio e a sua caixa de dinheiro que rolava. “Ela fez de propósito com a bengala!”, diziam as pessoas. As pancadas que elas davam em Rosa ecoavam e iam doer no coração do cego. “Estão a bater em Deus”, clamava ele. Porém, não lhe prestaram atenção.