Seta despedida: George
1995
Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não há água nem vento, só calor, na longa rua por onde George volta a passar depois de mais de vinte anos. Calor e também aquela aragem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez venha do sul ou de qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe onde nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou?
Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente.
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche de George. As suas feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de George, não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.
Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani. Mas nesse tempo, dantes, não sabia quem era Modigliani e outros que tais, não eram lá de casa, os pais tinham sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma ignorância se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o único que tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus que estava na casa de jantar. Com superioridade, pois, e também com uma certa indignação. Ou seria mesmo vergonha? Como quem ouve um filho atrasado dizer inépcias diante de gente de fora que depois, Senhor, pode ir contar ao mundo o que ouviu. E rir. E rir.
Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além-terra, por além-mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está – estava-, até quando?, em Amsterdão.
Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas foram mesmo francamente confortáveis. Vives numa casa mobilada sem nada de teu? Mas deve ser um horror, como podes?, teria dito a mãe, se soubesse. Não o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca tinham sido minuciosas, de resto detestava escrever cartas e só muito raramente o fazia. Depois o pai morreu e a mãe logo a seguir.
Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. As pessoas ficam tão estupidamente presas a um móvel, a um tapete já gasto de tantos passos, aos bibelots acumulados ao longo das vidas e cheios de recordações, de vozes, de olhares, de mãos, de gente, enfim. Pega-se numa jarra e ali está algo de quem um dia apareceu com rosas. Tem alguns livros, mas poucos, como os amigos que julga sinceros, sê-lo-ão? Aos outros livros, dá-os, vende-os a peso, que leve se sente depois!
– Parece-me que às vezes fazes isso, enfim, toda essa desertificação, com esforço, com sofrimento – disse-lhe um dia o seu amor de então.
– Talvez – respondeu -, talvez. Mas prefiro não pensar no caso.
Queria estar sempre pronta para partir sem que os objectos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível, pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. Mesmo para estar onde estava.
Os pais não sabiam compreender esse desejo de liberdade, por isso se foi um dia com uma velha mala de cabedal riscado, não havia outra lá em casa. Mas prefere não pensar nos primeiros tempos. E as suas malas agora são caras, leves, malas de voar, e com rodinhas.
A outra está perto. Se houve um momento de nitidez no seu rosto, ele já passou. George não deu por isso. Está novamente esfumado. A proximidade destrói ultimamente as imagens de George, por isso a vai vendo pior à medida que ela se aproxima. É certo que podia pôr os óculos, mas sabe que não vale a pena tal trabalho. Param ao mesmo tempo, espantam-se em uníssono, embora o espanto seja relativo, um pequeno espanto inverdadeiro, preparado com tempo.
– Tu?
– Tu, Gi?
Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a pintar, primeiro à maneira de Modigliani, depois à sua própria maneira, à de George, pintora já com nome nos marchands das grandes cidades da Europa. Gi com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer de Lisboa. Em tempos tão difíceis.
– Vim vender a casa.
– Ah, a casa.
É esquisito não lhe causar estranheza que Gi continue tão jovem que podia ser sua filha. Quieta, de olhar esquecido, vazio, e que não se espante com a venda assim anunciada, tão subitamente, sem preparação, da casa onde talvez ainda more.
– Que pensas fazer, Gi?
– Partir, não é? Em que se pode pensar aqui, neste cu de Judas, senão em partir? Ainda não me fui embora por causa do Carlos, mas… O Carlos pertence a isto, nunca se irá embora. Só a ideia o apavora, não é?
– Sim. Só a ideia.
– Ri-se de partir, como nós nos rimos de uma coisa impossível, de uma ideia louca. Quer comprar uma terra, construir uma casa a seu modo. Recebeu uma herança e só sonha com isso. Creio que é a altura de eu…
– Creio que sim.
– Pois não é verdade?
– Ainda desenhas?
– Se não desenhasse dava em maluca. E eles acham que eu tenho muito jeitinho, que hei de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, tudo isso com muito jeito para o desenho. Até posso fazer retratos das crianças quando tiver tempo, não é verdade?
– É o que eles acham, não é?
– A mãe está a acabar o meu enxoval.
– Eu sei.
Há um breve silêncio, depois George diz devagar:
– Que calor, cheira a queimado, o ar. Terá sido sempre assim?
– Farto-me de dizer: cheira a queimado, o ar. Ninguém me ouve.
– Ninguém ouve ninguém, não sabes? Que aprendeste com a vida, mulher?
A sua voz está mole, pegajosa, difícil, as palavras perdem o fim, desinteressadas de si próprias, é como se se preparassem para o sono.
– Creio que estou atrasada – diz então, olhando para o relógio. – Estou mesmo – acrescenta, olhando melhor. – E não posso perder o comboio. Amanhã bem cedo sigo para Amsterdão. Estou a viver em Amsterdão, agora. Tenho lá um atelier.
– Amsterdão é? Onde fica isso?
Mas é uma pergunta que não pede resposta. Gi fá-la por fazer e sorri o seu lindo sorriso branco de dezoito anos. Depois ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, não se tocam, nem tal seria possível, começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais longe. E nenhuma delas olha para trás. O esquecimento desceu sobre ambas.
Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e casas da sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passagem de nível, será a mesma ou uma filha igual a ela? Árvores, casas e mulher acabam agora mesmo de mesmo de morrer, deram o último suspiro, adeus. Uma lágrima que não tem nada a ver com isto mas com o que se passou antes – que terá sido que já não se lembra? – uma simples lágrima no seu olho direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a compartilhar os seus problemas, não e não.
A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, nítido ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando num material qualquer, esbranquiçado e oleoso.
À sua frente a senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente completa, olha-a atentamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só pensados, uma mulher velha. Tem as mãos enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a certeza. A velha sorri de si para consigo, ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um guarda-chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não tem nada a ver com o de Gi – porque havia de ter? -, são como o dia e a noite. Uma velha de cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que discretamente mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um pouco esborratada.
Sem voz e sem perder o sorriso diz:
– Verá que há-de passar, tudo passa. Amanhã é sempre outro dia. Só há uma coisa, um crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, muito longe, para quê pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém a condena. Que idade tem?
– Quarenta e cinco anos. Porquê?
– É muito nova – afirma. – Muito nova.
– Sinto-me velha, às vezes.
– É normal. Eu tenho quase setenta anos. Como estava a chorar, pensei…
Encolhe os ombros, responde aborrecida:
– Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro…
– Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada a isso, vivo tão só. Cheguei à ignomínia de pedir, a pessoas conhecidas, retratos da minha família. Não tinha nenhum, só um retrato meu, em rapariguinha. E retratos de amigos, também. De amigos desaparecidos, levados pelas tempestades, os mais queridos, naturalmente. Porque… o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão, a velhice. Um dia vai acordar na sua casa mobilada…
– Como sabe que…
– E verá que está só e olhará para o espelho com mais atenção e verá que está velha. Irremediavelmente velha.
– Tenho um trabalho que me agrada.
– Não seja tonta, menina. Outro dia vai reparar, ou talvez já tenha dado por isso, que está a ver pior, e outro ainda que as mãos lhe tremem. E, se for um pouco sensata, ou se souber olhar em volta, descobrirá que este mundo já não lhe pertence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell é um tipo que toca guitarra e que Levi Strauss é uma marca de calças.
– Isso é ignorância, não tem nada a ver com a idade.
– Talvez seja ignorância, também. Talvez seja. Estou a incomodá-la, parece-me.
– Dói-me simplesmente a cabeça.
– Desculpe.
George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, bem-vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está totalmente só, ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter esquecido. A velhice também traz consigo, deve trazer, um certo esquecimento das coisas essenciais, pensa. Abre os olhos para lho dizer, para lho pensar, para lho atirar em silêncio à cara enrugada, mas a velha já ali não está.
O calor de há pouco foi desaparecendo e agora não há vestígios daquela aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável. George suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amsterdão na bela casa mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores.