Poesia ortónima 1921-1930
NATAL
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
1922
Ela canta, pobre ceifeira,
julgando-se feliz talvez;
canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
de alegre e anônima viuvez,
ondula como um canto de ave
no ar limpo como um limiar,
e há curvas no enredo suave
do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
na sua voz há o campo e a lida,
e canta como se tivesse
mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
e a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
pesa tanto e a vida é tão breve!
entrai por mim dentro! Tornai
minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
1924