Página dedicada a mi madre, julio de 2020

DIÁLOGO NO JARDIM DO PALÁCIO

A. O nosso pai e a nossa mãe foram os mesmos. Nós somos portanto a mesma cousa; somos um só, ainda que pareçamos dois? Ou não somos — e o que interveio entre nossos pais e nós para que pudéssemos ser diversos? O que é que me separa de ti? Estendo a mão e toco-te e não sei o que é tocar-te… Olho-te e não percebo o que é ver-te. Para mim és mais real do que eu própria porque te vejo todo, porque te posso ver as costas e não a mim… Para mim existo apenas de um lado… Oh, se eu pudesse compreender o que estou dizendo!

B. Que vês tu de mim? O meu corpo. Tu à minha alma não vês.

A. Mas nem a minha vejo, e ao meu corpo mal o vejo. Não o vejo como um corpo se deve ver para parecer real. Olho para baixo para ele, não olho para diante como para ver o teu. Se ao menos eu me sentisse sentindo meu corpo! Mas não me sinto dentro nem fora. Nem sou nem existo, o meu corpo. São — corpo e alma — qualquer cousa que eu não possuo. (Pausa) Ah! e quando nos espelhos que me reflectem me vejo de costas, andando, ou me vejo de lado — encho-me do terror do meu mistério. Sinto-me horrorosamente coexistir comigo [própria]. Ando atada a um meu sonho que sou eu. Quando me vejo de costas nos espelhos parece que tenho um outro ser, que sou outra cousa. Estranho-me por fora… Que horror que não possamos ver mais do que um lado do nosso corpo de cada vez. Que se passará do lado que não estamos vendo quando nós o não estamos vendo? (…) Reparaste já que não podemos ver mais do que dois lados do palácio ao mesmo tempo? Que Deus se estará pousando sempre do lado para que não podemos olhar? Se tu soubesses como a minha vida é pensar nisto!

B. Ah, tudo isso não me perturba tanto como a minha voz, quando soa de mim e eu penso que não a criei, nem sei o que ela é, e a trago comigo como uma coisa minha. Falo e reparo nas palavras e no mistério de elas significarem. Nunca te escutaste? Tu nunca te escutaste? Mais do que ver-me de fora, o que os teus espelhos, ainda assim, te conseguem, eu queria ouvir-me de fora! Tapo os ouvidos às vezes, para ouvir a minha voz dentro de mim, e ouço apenas um sussurro, como se estivesse mais perto de mim, e começasse já a conhecer de quem é a voz que é minha. E tenho um medo que não me deixa continuar…

A. Ah, e os outros sentidos! A quem te sabes tu na tua boca? Que cheiras tu quando não cheiras nada? E quando tocas com uma mão no teu braço ou na tua face — pensaste já que a tua mão é que toca na tua face e não a tua face na tua mão, mantém a tua face sob a tua mão e será sempre a tua mão que toca, e a tua face a que é tocada.

B. Mesmo o tocar nas cousas — que estranho. Se eu tiver aquela pedra na mão, daí a pouco não a sinto já — parece que pertence ao corpo. Que mistério que é tudo! Andamos a dormir para nós próprios. Quanta alma durará o nosso sono?

(Uma pausa)

A. Às vezes, quando penso muito adentro, sabe-me a que corpo e alma são uma cousa só… Parece-me então que realmente vemos as cousas de dois lados, que a alma das cousas é aquilo que nos parece que não vemos delas… Não, não é isto que eu te quero dizer… Vê, não sei pensar o meu pensamento!

B. Sim, compreendo o que não disseste. Mas o corpo não existe, talvez: é a alma vista pela [ ] de si-própria.

A. Não. Não é assim. Não é assim. Mas eu não sei como é.

B. Vamos jogar, se quiseres, um jogo novo. Joguemos a que somos um só. Talvez Deus nos ache graça e nos perdoe ter-nos criado… Senta-te aqui, defronte de mim e chegada a mim. Encosta os teus joelhos aos meus joelhos e toma as minhas mãos nas tuas… Assim… Agora fecha os olhos. Fecha-os bem e pensa… e pensa… Em que deverás pensar? Não, não penses em nada. Trata de não pensar em nada, de não querer sentir, de não saber que ouves ou que podes ver, ou que podes sentir as mãos, se quiseres pensar que elas existem… Assim, amor… Não movas nem o corpo nem a alma.

(Uma pausa)

B. O que sentiste?

A. Primeiro nada… Foi um espanto de ti e de mim… Depois que me esqueci de tudo, meu corpo cessou. Quis abrir os olhos mas tive um grande medo de os abrir. Depois cessei ainda mais… Fui pouco a pouco nem tendo alma. Encontrei-me sendo um grande abismo em forma poço, sentindo vagamente que o universo com os seus corpos e as suas almas estavam muito longe. Esse poço não tinha paredes mas eu sentia-o poço, sentia-o estreito, circular e profundo. Comecei então a sentir o grande horror — ah, já não poder senti-lo! — é que esse poço era um poço para dentro de si próprio, para dentro não do meu ser nem do meu ser poço, mas para dentro de si próprio, nem sei como (…)

B. (numa voz muito apagada) Depois? Depois?

A. Depois desci… Encontrei no pensamento uma dimensão desconhecida por onde fiz o meu caminho… É como se se abrisse no escuro um vácuo. O súbito pavor de uma Porta… Assim no meu pensamento uno, vácuo abstracto, uma porta se abriu, um Poço por onde fui descendo. Compreendes bem, não compreendes? Foi no pensamento todo abstracto e sem diferenças nem fins, nem ideias, nem ser, que um Poço se abriu… E eu desci, ao contrário do que se desce — ao contrário por dentro do ao contrário…

(Pausa)

B. Continua, continua…

A. Desci mais, sempre mais… e sempre nessa nova direcção. Mas… (ajuda-me a poder dizer isto!) (…)

A. Oh, que horror! que horror o que estou sentindo! Arrancam-me a alma como os olhos para não ver! Sabes o que eu sinto? (…) Sinto-o como se o visse — como se o visse e aquilo nem pensar se pode! Ah, agarra-me, tem-me nos teus braços! Aperta-me! Aperta-me tanto que o teu braço me magoe (…)

B. Não quero, não quero… Tu não sabes o que senti!

A. Não ouso querer não o ouvir… Mas tenho medo…

2.ª O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor (…) Cada uma de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.

1.ª Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.

2.ª Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não desiludir-se é acostumar–se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.

1.ª Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?

2.ª O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão… (…) Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.

A. Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!

B. Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar. Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.

A. Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.

B. Não, é porque sei quanto tu me não podes amar… Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna — o Homem e a Mulher… (…)

A. Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes… Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?…

B. Não podemos deixar de querer compreender (…) Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma… Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!

A. Agora podemos sonhar… Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.

B. Não… Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos… Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã… Olha, tolda-se o céu… Levanta-se o vento. Vai chover…

A. Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado… Tu…

B. Nada devia ser comigo é… Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.

A. Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivésses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor… Porque me olhas assim tão diferente e alheado?

B. Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos leva. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer — é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo (…)

A. Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares (…) Vai depressa, vai depressa. Chove mais.

(Fica parada a dizer-lhe de vez em quando adeus com a mão, num pranto apagado e tímido).

1913

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