Página dedicada a mi madre, julio de 2020

Novos contos da Montanha: Mariana

1944

 

 

 

 

– Meu rico filho! Dava-o agora assim de mão beijada! Não que ele custou-me a parir e a criar!…

Julho, era por toda a parte a mesma verdura a ondular e a mesma esperança a sorrir. A terra bebia o sol e a humidade, espremia-se depois quanto podia, e atulhava o mundo de folhas, de flores e de frutos.

Mariana, com o filho ao colo de cabeça a reluzir, ia andando e monologando.

– Não me faltava mais nada! Tenham-nos. Façam por eles, ora o canudo!

No Caleirão, mesmo à beira do caminho, o Júlio Pessanha regava.

– Deus o ajude!

– Vem com Deus…

A enxada nas mãos do trabalhador deu o golpe, e a terra fofa, como uma mulher sôfrega de amor, bebeu de um trago a levada que a beijou.

– Aonde é a ida? – perguntou o Júlio, da leira, enquanto a nascente ia acalmando a embelga.

– Justes – respondeu Mariana, sem convicção. – Justes ou Gache, conforme.

Parara e olhava enlevada o rego de água a correr. Esteve assim algum tempo, enquanto o Júlio a olhava a ela por sua vez, abrasado de calor.

– São horas…

– Tens tempo, mulher!… Espera um migalho, que te acompanho até aí acima…

– O que você quer bem sei eu…

– E então?…

Mariana riu-se, meteu o bico do peito na boca do filho e esperou.

– São só mais três talhadoiros – prometeu o Júlio, apressado no desejo.

– Ande lá…

Calma, sentou-se então numa anteira, com a mão direita a alisar docemente a penugem da criança. Depois, quando o Júlio acabou, ergueu-se e foi caminhando a seu lado, na paz simples de quem ia por bom caminho. Nas minas, pôs a criança à sombra de um carvalho, sobre o xaile, e deitou-se um pouco adiante entre as giestas, onde o Júlio a esperava já…

– Adeus – disse no fim, sem olhar o homem.

– Então adeus…

Pelo caminho fora, na tarde quente, o seu corpo tinha agora uma frescura de terra molhada. O filho, farto, dormia-lhe no colo. E Mariana, feliz, continuou o monólogo interrompido.

– Há cada uma! Dar-lhe o menino! Não faltava mais nada! Umas a tê-los e outras a gozá-los… A gente vê coisas!…

Na veiga de Justes, com olmos à beira do caminho, o corpo e as palavras que dizia perderam-se na sombra da ramagem espessa. E só três anos decorridos é que passou novamente por ali, agora acompanhada de duas crianças, uma menina de peito, e um pequeno, descalço e ruço, que ia levando pela mão.

– Deus o ajude!

– Vem com Deus…

Era o Joaquim Fortunato, no lameiro, a arralar milhão. Nos braços rijos do cavador, o molho de verdura túmida era como um corpo de mulher a tentá-lo.

– Até onde é a ida?

– Pedralva – respondeu Mariana ao calhar. – Ou Jurjais. É conforme…

A pequenita, a babar-se, dormia. O rapazinho, extenuado, aninhou-se na relva do caminho.

– Tu sentas-te? – ralhou Mariana, carinhosamente.

– Tou canchado…

– Deixa descansar o rapaz – disse de lá o Joaquim Fortunato. – Ele merendou?

O pequeno acenou com a cabeça a dizer que não, e o mondador pousou a braçada de relva e foi-lhe buscar pão e queijo.

– Também queres? – perguntou depois a Mariana.

– Se faz favor…

– Mas hás-de então vir cá…

Tinha o farnel ao fundo da leira, à sombra de um freixo que cobria a poça, com a cabaça de vinho metida na água a refrescar. Mariana deitou a filha adormecida no xaile, ao pé do irmão, e saltou a parede.

– Volto já. Não me demoro.

Foi, comeu, e em seguida o mesmo calor que já duas vezes a inundara apareceu-lhe no sangue a uma palavra do Joaquim.

– Com esta não contava eu… – começou ele, a olhá-la e a passar a mão pelo cachaço.

Ela riu-se. E pouco tardou que não sentisse extinto o lume que principiava a queimá-la também.

– Vamos lá embora, meus filhos.

A pequenita olhou-a com os olhos azuis do Júlio Pessanha, sem ver nada. O rapaz é que reparou que a mãe tinha terra nas costas.

– Adeus.

– Até qualquer dia…

O Joaquim Fortunato ficou com o gosto na boca daquele momento inesperado e saboroso. Por isso despediu-se reticente e, sempre que podia, vinha até à veiga na esperança de ver outra vez passar o corpo aberto e generoso de Mariana.

Mas o milho amadureceu, chegou o Inverno, a terra cobriu-se novamente de verdura, e nada de a mulher aparecer.

Andava longe, por termos de Vessadios, e foi em plena serra dos Corvos que uma manhã o Lopo deu por ela a atravessar o rebanho.

– Deus o ajude!

– Vem com Deus…

Trazia agora três filhos, um casal a pé, e nos braços um terroso cachopinho, a cara do Joaquim Fortunato por uma pena.

Era Março e fazia ainda frio. No monte orvalhado, que o pálido sol da manhã ia enxugando devagar, brilhavam teias de aranha, estendidas, a corar sobre os tojos. O pastor acendera uma fogueira. E o fumo das carquejas molhadas subia ao céu lentamente, lasso e voluptuoso.

Aqueçam-se.

Chegaram-se todos às lambras.

Agasalhadas na lã, plácidas, as ovelhas pastavam. O laboreiro, deitado ao pé do borralho, dormitava. Uma contida paz cobria tudo.

– Não te fazia agora por estes sítios – começou o Lopo, a enrolar um cigarro forte.

Mariana sentiu outra vez o sangue a ferver-lhe pelas veias fora. A fogueira precisava de lenha.

– E se nós fôssemos a uma meda de rama, que há ali adiante, buscar um braçado dela?

Mariana calou-se. O lume, por dentro, continuava a queimá-la.

– Põe aí o pequeno – ordenou ele.

Ela obedeceu. E, logo adiante, num valado, sobre gabelas secas de mato, o seu corpo serenou.

– Vamos, meus filhos – disse pouco depois, antes mesmo de deixar cair sobre os tições apagados a caruma que trazia. – Vamos, meus filhos.

Os dois maiores ergueram-se, e o pequenino ficou a olhá-la do chão, inquieto, sôfrego de colo e de peito.

– O rapaz já podia começar a servir… Eu, com a idade dele, guardava cabras… Queres tu deixá-lo comigo? – propôs o Lopo.

– Deixá-lo?!

Pelo caminho fora a palavra soava-lhe como um zumbido atroz nos ouvidos escandalizados.

– Deixá-lo! Há cada uma! Ia agora deixar-lhe o menino!

Nas matas do Vale-Fundeiro o protesto tinha o tamanho e o vigor dos castanheiros sem idade que ali cresciam. E só ao chegarem à veiga de Constantim é que aquela revolta se atenuou, desvanecida pouco a pouco pela verdura sedativa dos lameiros.

– Isto é que é terra! – não se conteve o pequeno mais velho, com o instinto campónio do Custódio, o pai, a brilhar-lhe nos olhos.

– É como as outras, que mais tem? – respondeu Mariana, sem atingir a fundura do grito.

– Olhe lá que não seja!

Mariana não podia entender a voz ancestral que irrompia da natureza virginal do filho. A terra parecia-lhe una, indivisível, nivelada na mesma serenidade e no mesmo destino de criar. Aqui, ali, acolá, cerros ou descampados, várzeas ou costeiras, eram sítios iguais, que calcorreava sem distinguir a qualidade do barro que se lhe agarrava aos pés. Compreendia tudo, menos o afeiçoamento da perdiz ao monte nativo. Todos os horizontes lhe acenavam da mesma maneira. Em qualquer mata miúda paria naturalmente e atrás de qualquer parede recebia a seiva de uma nova vida. Não. Nem entendia o rapaz a gabar os lameiros de Constantim, nem a sensualidade do Jeremias Manso a querer fazer dela um simples instrumento de prazer.

– Outra vez… – pedia ele, ao vê-la erguer-se, honesta e pura como uma leiva semeada.

Nem sequer respondeu. Saiu do centeio, pôs-se a frente da ninhada, e retomou o caminho da sua aventura.

Só em Ordonho abrandou a marcha.

– Quantos são ao todo? – perguntou o Raul, que já não via bem, quando o rancho lhe passou à porta.

– Sete – respondeu o cunhado.

– Valha-nos Deus! Que desgraça! As raparigas estão mulheres feitas e a mãe a dar-lhes um exemplo daqueles…

Mas já Mariana ia longe, alheia ao zelo do velho sátiro. Pedia: se davam, davam; se não davam, deixava os filhos matar a fome nos soutos, nos pomares ou nas vinhas, e a quem tentava, de uma maneira ou doutra, dividir a perfeita unidade que formava com a prole, respondia a rugir como uma leoa ferida.

– Criada?! Ia-lhe agora dar a menina para criada! A gente vê cada uma! De lhe comprar um farrapo para se vestir, não se lembrou a senhora. Criada! Que conveniência!… A servir ponha as filhas, se não lhes tem amor… Agora as minhas, está bem livre!

Ia já nas matas do Bouço e a indignação continuava ainda.

– Criada!

A palavra, dita por intenção da sua Zulmira, parecia-lhe um insulto sem perdão.

– Fala à gente!…

Mariana nem o olhar se dignou concentrar no rosto desejoso do Lopo. O seu ventre estava já fecundado pelo Guilherme da Póvoa, e o Lopo, como os outros, passada a hora, não significava nada, nada, na sua lembrança. A pureza com que se entregava tocava-os de uma força criadora e irresponsável que os imaterializava como deuses distantes. A terra humilde era ela. Eles actuavam apenas como o vento, que traz a semente, e passa. Mas todos teimavam em permanecer ligados ao doce sabor de um minuto, e queriam-na segunda vez.

– Nos montes de Vessadios, não te lembras?

– Vossemecê está maluco! Eu conheço-o lá!

O Lopo não queria acreditar no que ouvia. E por orgulho ofendido, frouxo aceno do sangue e mágoa de solitário, teve um gesto:

– Conheças ou não conheças, já pariste de mim. Por isso, quero o pequeno.

– Que pequeno?!! – perguntou Mariana, assombrada.

– Aquele. O chegado à de vestido às riscas.

– O meu Jorge?! O homem é doidinho! Os filhos são meus, muito meus! Atreva-se a pôr-lhes a mão, se quer ver…

O pastor tinha-se aproximado, num desejo irresoluto de tirar da touceira a vergôntea que lhe pertencia. Não o empurrava nenhum impulso profundo. Era uma reacção de momento, sem calor verdadeiro. E como Mariana parecia uma cabra das dele, pronta a marrar às cegas contra o cão que lhe farejasse a cria, deteve os passos que dera sem convicção.

Bem, está bem… Mais perde… – disse então, a justificar a debilidade do seu apego ao andrajoso ser a que tinha ajudado a dar vida. – És parva…

Mariana sorriu. E seguida do rebanho inteiro, lá partiu para Valongueiras, à esmola de sábado em casa do Sr. Vitorino.

– Essa mulher continua na mesma vida? – perguntou na sala a Marília, que acabara de chegar do colégio com um selo branco na virgindade.

– Pois continua…

– Pouca vergonha maior!

– Que se lhe há-de fazer?

– Tirar-lhe as crianças e metê-las num asilo.

– Deixa-te de asilos! – reprovou o Sr. Vitorino, que tivera uma meninice aperreada.

– Então chamar à ordem os responsáveis!

– Vai-lhe lá falar nisso!…

– E é que vou mesmo!

Ergueu-se cheia de zelo, e foi direita como uma heroína ao encontro do lodaçal.

Rodeada do bando, Mariana comia em paz na cozinha o caldo caridoso.

– Estás boa?

– Muito agradecida. Cá vou andando…

– Olha lá, os pais dos pequenos não tomam conta deles?

Mariana sorriu, cheia de uma inocência que a outra não entendia. E respondeu, na sua pureza:

– Saiba a menina que não têm pai… São só meus.

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