Contos exemplares: A Viagem
1962
A estrada ia entre campos e ao longe, às vezes, viam-se serras. Era o princípio de Setembro e a manhã estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas.
E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem:
– É o meio da vida.
Através dos vidros, as coisas fugiam para trás. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as árvores e os rios fugiam e pareciam devorados sucessivamente. Era como se a própria estrada os engolisse.
Surgiu uma encruzilhada. Aí viraram à direita. E seguiram.
– Devemos estar a chegar – disse o homem.
E continuaram.
Árvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para trás, escorregavam para longe.
A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
– Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por um caminho errado.
– Deve ter sido na encruzilhada – disse o homem, parando o carro. – Virámos para o poente, devíamos ter virado para o nascente. Agora temos de voltar até à encruzilhada.
A mulher inclinou a cabeça para trás e viu quanto o Sol já subira no céu e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu também que o orvalho já secara nas ervas da beira da estrada.
– Vamos – disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para trás.
A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabeça nas costas do banco e pôs-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que lá tivesse estado. Só o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.
Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murmúrios.
E alguém lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E árvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado.
– Logo que chegarmos – disse ela -, vamos tomar banho no rio.
– Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva – disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou, com sede, a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás.
– Devemos estar a chegar à encruzilhada – disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e montes. E meia hora passou.
– Já devíamos ter chegado à encruzilhada – disse o homem.
– Com certeza nos enganámos no caminho – disse a mulher.
– Não nos podemos ter enganado – disse o homem -, não havia outro caminho.
E seguiram.
– A encruzilhada já devia ter aparecido – disse o homem.
– O que é que vamos fazer? – perguntou a mulher.
– Seguir em frente.
– Mas estamos a perder-nos.
– Não vejo outro caminho – disse o homem.
E seguiram.
Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes. As paisagens fugiam, puxadas para trás.
– Estamos a perder-nos cada vez mais – disse a mulher.
– Mas onde há outro caminho? – perguntou o homem.
E parou o carro.
À esquerda havia uma grande planície vazia; à direita uma colina coberta de árvores.
– Vamos subir ao alto da colina – disse o homem. – De lá devem avistar-se todos os caminhos em redor.
Subiram ao alto da colina e não avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta.
Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada.
– Sei – disse o cavador -, é para além.
– Podes guiar-nos até lá?
– Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a água passar. Demoro pouco.
– Nós esperamos – disse o homem.
– Tenho sede – disse a mulher.
– Além, atrás dos penedos – disse o cavador, apontando -, há uma fonte. Ide lá beber enquanto eu acabo o rego.
Caminharam na direção que o cavador apontara e atrás dos penedos encontraram a fonte.
A fonte caía do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada.
Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da água, esqueceram o cansaço, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de mãos dadas, imóveis e calados.
Depois, um pássaro poisou perto da fonte e o homem disse:
– Temos de ir.
Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, à procura do cavador.
Mas quando chegaram à horta, o cavador não estava lá. Viram a água a correr nos regos; viram a salsa e a hortelã crescendo lado a lado; mas não viram o cavador.
– Não quis esperar – disse o homem.
– Porque é que nos mentiu?
– Talvez não quisesse mentir. Talvez não pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de nós.
– E agora? – perguntou a mulher.
– Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direção que ele há pouco apontou.
Subiram e desceram a colina em direção ao carro, mas quando chegaram à estrada o carro tinha desaparecido.
– Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direção.
– Ou alguém nos roubou o carro.
– Onde estará o cavador?
– Talvez tenha ido à fonte, à nossa procura.
– Temos de encontrar alguém que saiba onde estão o caminho e o carro – disse a mulher.
– Vamos outra vez à fonte; com certeza o cavador foi là ter.
E puseram-se de novo a caminho.
Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortelã e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos não encontraram a fonte.
– Não era aqui – disse o homem.
– Era aqui- disse a mulher. – Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada.
E foram pela estrada à procura do carro.
– Que vamos fazer? – perguntou a mulher.
– Continuar a procurar – respondeu o homem.
Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no céu.
– Estou cansada – disse a mulher.
– Quando chegarmos à terra para onde vamos, descansarás, estendida na relva, à sombra das árvores e dos frutos.
– Temos de encontrar depressa o caminho – disse a mulher.
Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
– Vamos até lá – disse o homem. – Talvez lá esteja alguém que nos saiba ensinar o caminho.
Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
Bateram à porta da casa. Ninguém respondeu. Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ninguém respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com força, espaçadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ninguém respondeu.
Então o homem avançou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde só estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Páscoa.
Não havia ninguém na cozinha. Não havia ninguém nos quartos. Não havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.
No forno a cinza ainda estava quente e, em cima de uma mesa, havia vinho e pão.
– Tenho fome – disse a mulher.
Sentaram-se e comeram.
– E agora? – perguntou a mulher.
– Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar – disse o homem.
Saíram e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido.
– Tenho medo – disse a mulher. – Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.
– Estamos juntos – disse o homem.
– Mas o que é que vamos fazer sem estrada?
– Vamos voltar para a casa – disse o homem – e lá esperaremos até que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem.
E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa, agora havia só uma pequena clareira e pedras espalhadas.
Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no chão, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada à terra.
– Vamos – disse o homem.
– Para onde? – perguntou ela.
– Havemos de encontrar qualquer caminho.
– Para quê? Perdemos tudo quanto encontramos.
O homem ajoelhou ao lado da mulher e limpou na cara dela as lágrimas e a terra.
Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente.
Atravessaram o pinhal e encontraram um campo.
Mas não se via nenhum caminho.
No meio do campo havia uma macieira carregada de maçãs vermelhas, polidas e redondas.
– São lindas! – disse a mulher.
Colheu uma para si e outra para o homem. Sentaram-se os dois nas ervas finas, sob a sombra sossegada da árvore e a carne firme, fresca e limpa da maçã estalou entre os seus dentes.
Era já o princípio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados ao duro tronco escuro e rugoso, descansaram em silêncio, ouvindo só o levíssimo rumor da terra sob o sol.
Depois o homem disse:
– Vamos.
Levantaram-se e seguiram.
Já no extremo daquele campo, junto à sebe que o separava de outro campo, a mulher exclamou:
– Devíamos ter colhido algumas maçãs para trazer. Não sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar até encontrarmos outra vez alguma coisa de comer.
– É verdade – respondeu o homem.
E, voltando para trás, caminharam para a macieira, que no meio do campo se desenhava redonda.
Porém, quando chegaram ao pé da árvore, viram que nos ramos, entre as folhas, todos os frutos tinham desaparecido.
– Alguém passou por aqui, passou sem o vermos e colheu as maçãs todas – disse o homem.
– Ah! – exclamou a mulher – tão depressa! Tão depressa desaparece tudo! Encontramos as coisas. Estão ali. Mas quando voltamos já desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou.
Baixando a cabeça, retomaram em silêncio a caminhada.
Atravessaram sucessivos campos, mas não encontraram ninguém que os guiasse e lhes respondesse. Junto de uma sebe viram no chão um tarro de cortiça e uma bilha de barro.
A mulher destapou o tarro e espreitou dentro da bilha.
– Estão vazios – disse ela.
– Onde estará o dono?
Olharam em redor mas não se avistava ninguém. Chamaram, ninguém respondeu.
– Talvez esteja do outro lado da sebe – disse a mulher.
Atravessaram a sebe, mas do outro lado não viram nenhum homem. Viram só um pequeno regato, que corria quase escondido entre trevos e agriões. Ajoelhados, lavaram as mãos e a cara. Na concha das suas mãos, a mulher bebeu e deu de beber ao homem.
– Se tivéssemos trazido a bilha – disse ela -, poderíamos levar água connosco.
– E também no tarro poderíamos levar frutos. Vamos buscar a bilha e o tarro.
Atravessaram a sebe.
Mas a bilha estava partida e o tarro estava todo roído.
– Quem a terá partido?
– Talvez a brisa ou algum animal passando.
– Quem o terá roído?
– Os ratos, as serpentes, as toupeiras, os cães selvagens.
– Quebrados e roídos já não servem.
– Vamos embora depressa – disse a mulher.
Era já o meio da tarde, quando viram uma grande floresta, de cuja orla partia um carreiro.
– Vamos pelo carreiro. Indo por aqui temos que encontrar gente. Os carreiros são feitos para passarem pessoas. Os carreiros são feitos para levar até aos lugares onde há gente.
E entraram na floresta.
Carvalhos, castanheiros, tílias e bétulas, cedros e pinheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de luz oblíqua passavam entre os troncos. O ar era verde e doirado.
– Que bonita floresta!- exclamou a mulher.
– Que bonita floresta! – exclamou o homem.
Aqui e além estalava um ramo seco. Às vezes uma pinha caía do alto. Ouvia-se o murmúrio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se o canto dos pássaros escondidos. Ouvia-se o silêncio dos musgos e da terra.
E embalados na beleza, na música e no perfume da floresta, o homem e a mulher seguiram de mão dada pelo carreiro.
Até que ouviram ao longe um som de machadadas. Foram andando e foram-se aproximando do som.
– Vem dali! – disse a mulher.
E saindo do carreiro meteram à direita.
Encontraram um lenhador a rachar lenha.
– Estamos perdidos – disse o homem -, andamos à procura do caminho para a estrada
– Ide sempre a direito pelo carreira – disse o lenhador – e encontrareis a estrada.
– Obrigado – disse o homem.
E voltaram os dois para trás.
Mas não encontraram o carreiro.
– Como é que o perdemos? – disse a mulher.
– Vamos pedir ao lenhador que nos guie – disse o homem.
Voltaram ao lugar onde tinham falado ao lenhador. Mas só encontraram lenha rachada. O lenhador tinha desaparecido.
– Foi-se embora – disse a mulher.
– Não deve estar longe. Vamos chamar.
Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, nenhum rumor humano lhes respondeu. Só ouviam cantos de pássaros, sons de ramos secos estalando, murmúrios de brisa nas folhas.
– Vamos escutar calados – disse o homem. – Ele não pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir o barulho dos seus passos.
E escutaram calados.
Mas só se ouviam os barulhos da floresta.
– Sei uma maneira melhor de escutar – disse a mulher.
E pôs-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois o outro, os ouvidos à terra.
Mas só ouviu o silêncio palpitante da terra.
– Só oiço a terra – disse ela.
– Vamos para a frente – respondeu o homem.
E seguiram.
Encontraram uma sebe carregada de amoras.
– São maravilhosas! – disse a mulher.
O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as na palma da mão à mulher. Ela provou e tornou a dizer:
– São maravilhosas!
Rindo, começaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chão a comer. A luz oblíqua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, o homem disse:
– Temos de ir. Temos de encontrar a estrada e a terra para onde vamos.
– Como havemos de encontrar essa terra, se nem sabemos onde estamos?
– Temos de procurar – respondeu o homem.
Levantaram-se para partir.
– Espera – disse a mulher. – Quero levar amoras.
E, desatando o nó do lenço que trazia ao pescoço, abriu e estendeu o lenço no chão. Começaram os dois a colher amoras e reuniram uma grande pirâmide dentro do lenço. Depois ataram duas a duas as quatro pontas.
– Vamos – disse o homem, passando o dedo entre os dois nós.
E retomaram o seu caminho.
Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde.
– Esta floresta é linda! – disse a mulher.
– É – disse o homem -, mas não encontrámos ainda a estrada.
A mulher, porém, entornou a cabeça para trás e respirou profundamente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta.
– Ah! – disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e belo. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas, como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.
– O ar e a luz – disse o homem – são bons e belos. Se não estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz não nos sabem ensinar a estrada.
Ouviram um pequeno murmúrio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio.
Era um pequeno rio, estreito e claro, em cujas margens cresciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas.
O homem e a mulher deitaram-se de bruços no chão, aproximaram a cara da água e começaram a beber.
– Que água tão limpa! – exclamou a mulher. – Vamos tomar um banho.
Despiram-se e entraram no rio.
Ora rindo, ora em silêncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pedras polidas do fundo, atravessando um mundo suspenso, transparente e verde. Trutas azuis deslizavam rente aos seus gestos.
Depois estenderam-se à sombra doirada da floresta, sobre as relvas das margens. O perfil da mulher recortava-se entre as flores.
– Aqui é quase como na terra para onde vamos – disse ela.
– É – respondeu o homem -, mas aqui é um lugar de passagem.
E ambos se levantaram e se vestiram.
– Vamos? – perguntou ele.
– Espera um momento – respondeu a mulher. – Quero primeiro colher flores para levar.
Ajoelhou-se no chão e começou a fazer um ramo. E o homem reparou que ela colhia as flores arrancando-as com a raiz e perguntou:
– Por que é que colhes as flores com a raiz?
– Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Não sei se lá há flores iguais a estas – respondeu a mulher.
E seguiram.
Agora o dia começava a cair.
– Tenho fome – disse a mulher.
– Temos as amoras – disse o homem.
Pousou o lenço no chão e desatou os nós.
Mas o lenço estava vazio.
Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse:
– As pontas do lenço estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma, à medida que íamos andando. Uma por uma. Nem as senti cair.
– Tenho fome – disse a mulher.
– Vamos para a frente – disse o homem.
Viram, ao longe entre as árvores, um clarão vermelho.
– É o pôr do sol! – exclamou a mulher. – Já é o pôr do sol!
– Vamos depressa – disse o homem. – Vem aí noite e ainda não encontrámos o caminho.
E foram, quase correndo.
Entre as sombras do crepúsculo, ouviram de repente vozes.
– Gente! – exclamou o homem. – Estamos salvos!
– Salvos? – perguntou a mulher.
E de novo se ouviram vozes.
– Estão para aquele lado – disse a mulher, apontando para a esquerda.
– Não, estão para além – disse o homem, apontando para a direita.
O homem agarrou a mão da mulher e correram os dois para a direita.
Mas à medida que iam correndo, as vozes iam-se tornando-se mais distantes.
– Vão mais depressa do que nós! – queixou-se a mulher.
– Mas – respondeu o homem -, se conseguirmos ao menos seguir a direção que levam, estaremos salvos.
Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crepúsculo cresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir, e a noite caiu espessa e cerrada.
A Lua ainda não tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ruídos, murmúrios, que eles confundiam com vultos, passos, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de árvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens.
– Estamos perdidos? – perguntou a mulher.
– Não sabemos – disse o homem.
Seguiram devagar, de mão dada, em silêncio, encostados um ao outro.
Até que, de repente, viram que tinham chegado ao fim da floresta.
Cheios de esperança, avançaram para o espaço descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram à sua frente um abismo.
Debruçados espreitaram. Porém, à luz das estrelas nada viam diante de si senão um poço de escuridão, enquanto um frio de mármore lhes tocava a cara.
– É um precipício – disse o homem. – A terra está separada em nossa frente. Não podemos dar nem sequer mais um passo.
– Olha! – respondeu a mulher.
E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha à esquerda uma alta arriba de pedra e à direita o vazio.
– Vamos – disse o homem.
– Tenho medo – disse a mulher.
– Estamos juntos – respondeu o homem -, não tenhas medo.
E seguiram pelo carreiro.
O homem ia à frente e a mulher, atrás, segurava-se com a mão esquerda aos penedos e com a mão direita ao ombro do homem.
Iam em silêncio, sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo.
Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou à mulher:
– Segura-me!
Mas já o ombro dele escorregava das mãos dela. E a mulher gritou:
– Agarra-te à terra!
Mas nenhuma voz lhe respondeu, pois no grande silêncio nítido e sonoro só se ouvia o rolar das pedras.
Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chão em frente do vazio.
– Responde! – gritou, debruçada sobre o abismo.
Longe, o eco da sua voz repetiu:
– Responde.
Estava estendida na terra, com as mãos enterradas na terra, e começou a gritar, como quem está perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
– Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rastos pelo carreiro, tateando o chão com as mãos, em busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas não havia passagem.
Então tentou descer pela própria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e raízes, deixou-se escorregar ao longo do precipício. Mas os seus pés não encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
– Tenho de voltar para o carreiro – pensou a mulher – e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e raízes, içou-se para o carreiro.
Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela não cabia, onde nem os seus pés cabiam. Um rebordo sem saída. Aí ficou, de lado, com os pés um em frente do outro, com o lado direito do seu corpo colado à pedra da arriba e o lado esquerdo já banhado pela respiração fria e rouca do abismo. Sentia que as ervas e as raízes a que se segurava cediam lentamente, com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder.
Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos.
Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:
– Do outro lado do abismo está com certeza alguém.
E começou a chamar.